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“Genialidade e Superdotação”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria:
Angela
M.R.Virgolim. Doutoranda de Educação Especial da Universidade de Brasília
(1997).
Adaptação:
Superdotado Álaze Gabriel.
RESUMO
Este artigo tem como objetivo enfocar as atuais concepções sobre
superdotação, abordando os aspectos históricos da inteligência e o
desenvolvimento do interesse pelo estudo do indivíduo portador de altas habilidades.
As diversas definições e formas de identificação são discutidas, assim como as
teorias de Robert Sternberg, Howard Gardner e Joseph Renzulli com relação ao
tema. O artigo aponta também para a necessidade da ampliação desta área no
Brasil, através do incentivo à pesquisa, e da implantação de programas mais
amplos e efetivos que alcancem uma parcela maior de nossa população.
I. INTRODUÇÃO
Percebe-se, principalmente nas últimas décadas, um extenso
movimento, no sentido de favorecer uma educação que estimule o desenvolvimento
do indivíduo de acordo com suas necessidades educacionais, o que certamente
inclui a promoção da atualização do potencial dos portadores de altas habilidades.
Cada vez mais, estes indivíduos estão sendo percebidos como peças-chave no
desenvolvimento dos países, constituindo parte essencial de um sistema
educacional mais democrático e humanitário. Embora haja sempre os que defendem
a prioridade da alocação de fundos para a educação dos portadores de deficiência,
a educação do indivíduo superdotado não deve ser vista como competindo com
estes ideais, mas como tendo seu próprio espaço neste mesmo complexo de métodos
e metas educacionais (Cropley, 1993).
No nosso país, os esforços feitos neste sentido ainda são tímidos
e ineficientes, açambarcando uma ínfima porção da população brasileira.
Atualmente contamos com poucos programas para a identificação e educação do
indivíduo superdotado, sendo que muitos deles, iniciados no final da década de
70, foram desativados ou modificados, passando a atender segmentos ainda
menores da população. Descrevendo os poucos programas ainda existentes no
Brasil, Alencar e Blumen (1993) assinalam a necessidade, num país de proporções
continentais como o nosso, de se desenvolver programas mais amplos e efetivos
que alcancem uma parcela maior da nossa grande população. A necessidade de
identificação precoce de crianças que apresentam altas habilidades e talentos,
programas educacionais especiais, aliados à preparação apropriada de
professores para lidar com tal grupo, e o desenvolvimento de pesquisas na área são
algumas das recomendações que as autoras fazem para o desenvolvimento eficaz
deste campo no país.
Podemos encarar esta área como ainda nova no Brasil. Os programas
que temos sofrem dificuldades variadas, como a falta de recursos
governamentais, falta de materiais adequados às necessidades desta população
especial, falta de um conhecimento mais sólido sobre o tema por parte dos
profissionais de educação e da sociedade em geral. Além disso, o
desconhecimento de técnicas eficazes e modernas de identificação, a falta de
currículos e programas mais adequados aos diferentes níveis de habilidade nos diferentes
campos, a inexistência de programas ao nível de escolas particulares de 1o e 2o
graus, a falta de treinamento especializado dos professores, tanto das escolas
regulares quanto dos programas específicos, aliado ao desconhecimento de
pesquisas e programas recentes para superdotados nos diferentes países, fazem
com que as poucas iniciativas se percam no vazio, deixando de contribuir de forma
mais efetiva para o processo educacional como um todo e para o avanço
tecnológico e cultural do país.
Uma vez que a literatura sobre o tema é escassa no Brasil, e
poucas são as pesquisas desenvolvidas sobre o indivíduo superdotado, o presente
artigo objetiva enfocar as atuais concepções sobre o tema, abordando aspectos
históricos da inteligência e da superdotação, e delineando o desenvolvimento do
interesse pelo seu estudo através dos tempos. Serão também discutidas as
diversas definições e formas de identificação da superdotação, mostrando como
diferentes teóricos e pesquisadores percebem o tema.
A Terminologia
Uma das dificuldades do tema aqui tratado é a própria nomenclatura
ou terminologia utilizada para designar a pessoa portadora de altas habilidades
e talentos. No Brasil, o termo superdotado, de uso corrente, produz
confusão ao sugerir a idéia de “super”, ou de capacidades que se situam em um
nível muito além das apresentadas pelo ser humano comum. O termo se torna
inconveniente até mesmo no processo de identificação, quando se busca os
extremos em detrimento de um contínuum de comportamentos. Da mesma
forma, o termo em inglês gifted ou giftedness se refere a gift,
que se traduz por “presente, dádiva, dom”, sugerindo que a habilidade superior
é um dom natural ou dádiva divina.
Estes conceitos têm sido criticados (por exemplo, Alencar, 1986;
Silva, 1992) e novos termos propostos. Em 1994 a Secretaria de Educação
Especial do Ministério da Educação e do Desporto sugeriu o uso do termo
“indivíduo portador de altas habilidades”, situando o indivíduo como portador
de uma característica que o diferencia de outros enquanto comportamento, mas
não como pessoa. No presente estudo usaremos os dois termos
intercambiavelmente, pretendendo designar aquele indivíduo que possui
capacidades, em uma ou mais áreas, distintamente acima da média de seus pares.
II. VISÃO HISTÓRICA SOBRE A INTELIGÊNCIA E SUPERDOTAÇÃO
Crenças e mitos sobre a superdotação
Os indivíduos que se destacam por suas habilidades superiores
sempre foram motivo de curiosidade. Independentemente de quando ou em que campo
do conhecimento o ser humano se destaca por sua excelência, há sempre um
movimento de reação, seja ele de interesse, aceitação, desconfiança ou antipatia
– em alguns casos até mesmo inveja por parte de pessoas mal-intencionadas
próximas –, dependendo de como é visto pelo seu ambiente sócio-cultural.
Enquanto alguns passam para a imortalidade pelas suas contribuições, outros são
esquecidos após sua morte (Tannembaum 1983). Seja como for, sempre coube à
sociedade determinar qual deles valorar em uma acepção mais elevada, e quais ignorar,
havendo uma mudança de tais valores relativamente ao tempo e à cultura. Alguns
destes valores sobreviveram e permanecem hoje como resquícios de uma tradição
enraizada em crenças populares, que se traduzem por mitos e falsos juízos sobre
o que vem a ser a habilidade superior.
Nos séculos XV e XVI, por exemplo, os indivíduos que se destacavam
por suas façanhas e proezas eram tidos como inspirados por demônios, apontados
como hereges e queimados como bruxos. Já na Renascença, com o advento das novas
teorias derivadas da observação e classificação, os demônios foram substituídos
pela mente, concebida como função do cérebro e do sistema nervoso, o que deu
origem a fortes interesses sobre as diferenças individuais no comportamento
mental. A falta de controle emocional, ausência de disposição, desilusões,
alucinações, idéias grandiosas e novos “insights”, e qualquer desvio, fosse na
direção da insanidade ou da genialidade, representavam, para os médicos, instabilidade
mental, assumidos como sintoma de doença nervosa, mórbida e anormal (Grinder,
1985). Esta concepção levou à crença de que crianças precoces estavam
destinadas a serem diferentes, fisicamente fracas e neuróticas.
Na metade do século dezenove a questão da hereditariedade foi
inserida na equação, pesando para isto as idéias do sociólogo francês Moreau de
Tours, considerado “expert” em patologia mental. Segundo Moreau, o gênio seria
o resultado de um desvio mórbido de um tipo original, de uma árvore genealógica
neuropática; e seus descendentes, “expostos às mesmas influências, rapidamente
desceriam ao mais alto grau de degenerescência” (Grinder, 1985). Também os
trabalhos de Lombroso e Nisbet, em 1891, apontando para a instabilidade
comportamental em grande parte dos homens famosos da história, vieram colaborar
para o acréscimo das desconfianças sobre a ligação entre genialidade e
“anormalidade” (Tannembaum 1983).
Os primeiros testes mentais
Interessado nas habilidades intelectuais e influenciado pelas
idéias evolucionistas de seu primo Charles Darwin, o nobre inglês Sir Frances
Galton publicou, em 1869, “Hereditary Genius”, onde procurou demonstrar
que as habilidades mentais eram transmitidas da mesma forma que os traços
físicos através das gerações. Assim, estudou a transmissão hereditária da
eminência pela comparação de várias gerações de homens de mesma família na Grã
Bretanha, utilizando como fontes dados censitários e livros biográficos da
época, recorrendo a técnicas psicométricas para demonstrar, de forma empírica,
que as variações na habilidade intelectual seguiria o padrão de uma curva de probabilidade
normal (Grinder, 1985).
Galton também acreditava que a inteligência estivesse relacionada
à agudeza dos sentidos, estando condicionada pela seleção natural e pela lei de
distribuição das habilidades na mesma família. Assim, em 1884 fundou, em Londres,
um laboratório antropométrico de demonstração, onde mais de 9.000 visitantes foram
examinados. Sua bateria de “testes mentais” incluía medidas de força física,
sensibilidade de visão, discriminação perceptual e de cor, e tempo de reação,
pois, para ele, quanto mais sensíveis e perceptivos eram os sentidos, maior o
campo no qual o julgamento e o intelecto poderiam agir (Snyderman &
Rothman, 1990).
As idéias de Galton foram levadas para as universidades americanas
por James M. Cattell, que se interessava por investigar as diferenças
individuais na capacidade sensorial sob condições controladas, esperando
encontrar entre as correlações uma explicação para a interdependência entre os
processos mentais.
Embora nenhuma correlação tenha sido obtida entre essas medidas e
grau universitário, usadas pelos pesquisadores como evidência de atividade
intelectual complexa, os trabalhos tanto de Galton quanto de Cattell tiveram o
mérito de buscar explicações em dados psicométricos quantitativos, ao invés da explicação
subjetiva, anedótica e retrospectiva que caracterizava os trabalhos anteriores.
Galton introduziu a estatística às ciências sociais, e estabeleceu a
psicometria como o método por excelência para o estudo das diferenças
individuais do intelecto, notadamente para o estudo da habilidade superior (Grinder,
1985; Snyderman & Rothman, 1990).
Embora não se possa minimizar a importância das investigações de
Galton para o estudo das diferenças individuais, foi a partir de seus trabalhos
que surgiu a crença na teoria da inteligência fixa. Passou-se a acreditar que
havia um relacionamento entre a acuidade visual e inteligência geral, sendo que
a inteligência permaneceria intacta desde o nascimento até a morte do
indivíduo. Desta forma, poder-se-ia predizer, com exatidão, que tipo de
indivíduo uma criança iria se tornar, já desde a infância mais precoce, independentemente
de qualquer efeito do seu ambiente. Suas idéias, muito bem aceitas pela
comunidade científica da época, permaneceram por quase um século, influenciando
até nos dias atuais este campo de conhecimento (Clark, 1992).
Os trabalhos de Galton e Cattell tiveram uma marcante influência
nos estudos que, simultaneamente, também fazia Alfred Binet em seu laboratório
psicológico em Sorbone, na França. No entanto, Binet reconheceu logo que os
processos intelectuais mais complexos, como imaginação e compreensão, não poderiam
ser acessados através dos testes sensoriais. A oportunidade de testar
empiricamente esta hipótese surgiu quando ele e seu aluno Theodore Simon foram
convidados pelo Ministro da Instrução Pública de Paris, em 1904, para
desenvolver testes que pudessem assegurar que crianças mentalmente deficientes
não fossem inadvertidamente colocadas nas mesmas classes que crianças normais.
O teste desenvolvido pelos dois pesquisadores consistia, então, de
uma escala cujos 30 itens estavam organizados em ordem crescente de
dificuldade, padronizados para crianças de 3 a 11 anos de idade das escolas
parisienses. Os resultados nos testes eram dados, não em termos de um nível
absoluto de inteligência, mas pela comparação da idade mental do aluno
(eqüivalência de idade com as questões de maior dificuldade corretamente
respondidas) ou com sua idade cronológica. As crianças que passavam em testes
correspondentes a um ano ou dois abaixo de sua idade cronológica eram
identificadas como inferiores ou retardadas; e as que passavam em testes um ano
ou dois além de sua idade cronológica eram designadas como superiores ou
avançadas. Em 1911, o psicólogo alemão William Stern propôs o uso do termo
“quociente mental”, no qual a idade mental da criança é dividida por sua idade
cronológica. O Quociente de Inteligência (QI) a que nos referimos hoje em dia é
derivado desta medida, sendo o quociente mental multiplicado por 100.
A escala de Binet teve ampla repercussão, principalmente devido ao
fato de que funcionou para os objetivos a que se propôs, mostrando-se
consistente com outros indicadores de inteligência, como avaliações feitas por
professores e pares; além disso, mostrou ser mais eficiente e confiável do que
outras medidas anteriormente utilizadas. Binet reconhecia que a inteligência -
seja ela o que fosse, pois não se preocupou em defini-la - cresce durante a
infância, e era de opinião que o mais frutífero para a psicologia das diferenças
individuais seria se concentrar em níveis relativos da inteligência do que
tentar medir um conceito tão nebuloso quanto este em termos absolutos
(Snyderman & Rothman, 1990).
Em 1910 H. H. Goddard traduziu e aplicou o teste de Binet em 400
crianças “oligofrênicas” de uma escola em New Jersey, EUA, e, satisfeito por
sua exatidão, voltou a aplicá-la, em 1911, desta feita com 2000 crianças
normais. Completou-se assim, e com absoluto sucesso, a transição de seu uso com
crianças abaixo da média para o uso com crianças normais e acima da média
(Davis & Rimm, 1989), iniciando uma prática que se perpetua até os dias
atuais.
Terman e a controvérsia no uso dos testes
Lewis M. Terman se interessou pelo estudo das habilidades
superiores e, em 1916, como professor de psicologia da Universidade de
Stanford, publicou uma revisão da escala de Binet de 1911. A escala Stanford-Binet,
como se tornou conhecida, se tornou o padrão pelo qual todos os testes de
inteligência subseqüentes têm sido julgados (Snyderman & Rothman, 1990).
O status dos testes mentais elevou-se ainda mais quando
passou a ser massivamente utilizado na seleção de recrutas do exército
americano durante a I Guerra Mundial, o que marcou o início de uma controvérsia
pública sobre os resultados dos testes de inteligência. Tais discussões levaram
também a um debate que perdura na atualidade, trazendo à baila considerações
sobre hereditariedade versus ambiente, a natureza da inteligência e a própria
adequação do uso de testes, que motivaram importantes pesquisas nos últimos 60
anos e trouxeram uma nova consciência sobre o uso dos testes.
A primeira pesquisa significativa a respeito das habilidades
mentais superiores foi, sem dúvida alguma, o estudo longitudinal empreendido
por Terman em 1920, com subsídio governamental (Terman, 1975). Cerca de 1500
crianças de séries elementares da Califórnia (700 do sexo feminino e 800 do
sexo masculino) com QI de 140 ou mais, foram indicadas por seus professores
como altamente inteligentes, e estudadas em termos de origens raciais, gênero,
medidas antropométricas, aspectos físicos e de saúde, progresso escolar,
habilidades especializadas, interesses e traços de personalidade (Terman,
1975). Os resultados, publicados em uma série de cinco volumes, mostraram que
as crianças da amostra eram apreciavelmente superiores às crianças normais em
termos de saúde, ajustamento social, atitudes morais e domínio de disciplinas
escolares.
Além disso, ao longo das seis décadas em que este grupo foi acompanhado,
observou-se que a incidência de mortalidade, enfermidade, insanidade,
delinqüência e alcoolismo se mostrava abaixo da incidência com relação à
população em geral. Os resultados também evidenciaram que os indivíduos com
alto potencial diferiam entre si de muitas formas, não se constituindo um grupo
homogêneo; as diferenças entre o mais e o menos bem sucedido indivíduo no grupo
indicavam o status socio-econômico e educação universitária dos pais como
fatores de influência; e que o quociente intelectual continuava a aumentar
durante a idade madura (Sisk, 1987).
Tais resultados demonstravam, segundo Terman (1975), que o QI
poderia ser usado desde idades precoces para predizer a realização adulta
superior. Após a morte de Terman, seus associados continuaram com este estudo,
tendo já completado pelo menos seis décadas de acompanhamento destes sujeitos
(Alencar, 1986).
Várias críticas e observações podem ser feitas com relação a sua
amostra e a metodologia usada, como por exemplo: o fato dos alunos estudados
serem predominantemente de classe média-alta branca e provenientes de uma mesma
cultura; o fato de a nominação de professores ter privilegiado indivíduos com potencial
acadêmico superior em detrimento de alunos que se destacam pela criatividade ou
liderança, por exemplo; os fatores ambientais, como status sócio-econômico e
influências ambientais não foram levadas em consideração para acessar as
habilidades dos membros de grupos minoritários; e o fato da inteligência ser
considerada como um fenômeno fixo e unifacetado, preditiva do sucesso profissional
futuro.
Terman tenha colaborou, de certa forma, para uma visão mais
realista e aceitável do indivíduo superdotado, dando, a um campo repleto de
misticismo e falsas concepções, bases empíricas e de valor, que por muitas
décadas guiaram e deram impulso à área de identificação dos indivíduos
portadores de habilidades superiores.
Coube a Leta Hollinghworth, professora da Universidade de
Colúmbia, o mérito pelo pioneirismo de considerar a necessidade da escola tomar
para si a tarefa de educar e treinar as crianças com potencial superior para o
seu próprio bem estar quanto para o da sociedade em geral. Suas pesquisas
chamaram a atenção dos educadores para a necessidade de um currículo
diferenciado para tais alunos, tanto em profundidade quanto em rápido avanço
sobre as disciplinas convencionais, considerando diferentes habilidades
(Tannembaum, 1993; Colangelo & Davis, 1991).
Tannembaum (1983) assinala que os trabalhos pioneiros de Terman e
Hollingworth direcionaram as pesquisas subseqüentes e consideráveis esforços
foram feitos no sentido de examinar outros fatores, de origem não-intelectual,
associados à alta realização; de clarificar as condições presentes na família,
na escola e na comunidade que estimulam ou inibem o desenvolvimento do talento;
e de avaliar as várias influências educacionais no desenvolvimento da criança
com alto potencial. A partir destes estudos mostrou-se a necessidade de
programas especiais para a criança com altas habilidades, estando a escola em
posição privilegiada para ajudar o superdotado a se conscientizar de seu
potencial.
A evolução do conceito de inteligência
Sessenta anos de subseqüentes pesquisas na área das habilidades
mentais tornou claro que a inteligência é mais fácil de ser medida do que
definida (Snyderman & Rothman, 1990). Com o advento dos primeiros testes de
inteligência, Charles Spearman, um discípulo de Galton, inventou uma técnica conhecida
como análise de fator para investigar a estrutura da inteligência; esta
técnica se tornou a principal ferramenta para validação de constructos em
psicometria (Snyderman & Rothman, 1990). Spearman concluiu que todas as
pessoas possuíam uma inteligência geral, a que ele chamou de fator g. De
modo geral, o desempenho de um indivíduo em um teste de habilidade mental
refletia sua atividade cognitiva, sendo o fator s (inteligência
específica) o responsável pelas habilidades únicas do indivíduo quanto àquela
tarefa ou teste.
Thurstone foi o primeiro a assinalar que o mesmo conjunto de
resultados em um teste de inteligência poderia produzir um pequeno número de
fatores, ao invés de apenas um fator geral, como propunha Spearman. Sua
hipótese era de que a inteligência poderia consistir de um número relativamente
pequeno de faculdades independentes correspondentes a diferentes domínios cognitivos,
cada um delas contribuindo em graus diferentes, dependendo da situação. Tais
faculdades seriam: habilidade verbal, raciocínio indutivo ou geral, habilidade
numérica, memória mecânica, velocidade perceptual, fluência verbal, habilidade
espacial e raciocínio dedutivo, ainda hoje fortemente presentes nas
tradicionais medidas de inteligência (Snyderman & Rothman, 1990).
Guilford (1975; 1979) foi um dos primeiros a propor uma visão
multidimensional da inteligência. Ele propôs, por volta da metade do século, um
modelo para a estrutura do intelecto, composto por 120 fatores intelectuais que
descreviam os diferentes tipos de capacidades cognitivas, cada uma delas
podendo ser descritas em termos de uma única combinação envolvendo cinco tipos
de operações mentais, quatro tipos de conteúdos e seis tipos de produtos. Para
ele, a inteligência seria melhor definida como “uma coleção sistemática de
habilidades ou funções para o processamento de diferentes tipos de informação
em diferentes formas, tanto com respeito ao conteúdo (substância) quanto ao
produto (construto mental)” (Guilford, 1979, p. 289). A teoria multifatorial de
Guilford abriu espaço para a discussão do papel de outras habilidades
cognitivas no intelecto humano, como a criatividade, que não estaria sendo contemplada
pelos tradicionais testes de inteligência e que, como todos os outros aspectos
da inteligência, poderia ser desenvolvida.
A partir desta época, muitos estudos, teóricos e empíricos, assim
como novas teorias começaram a fazer frente à teoria unicista da inteligência.
Uma das mais importantes contribuições para o estudo do desenvolvimento humano
veio do trabalho de Jean Piaget, epistemólogo suíço que procurou explicar o desenvolvimento
intelectual pelas mudanças no desenvolvimento do funcionamento cognitivo. De
acordo com Piaget, o processo cognitivo emerge como resultado da reorganização
de estruturas psicológicas resultantes da interação dinâmica da criança com seu
ambiente. A interação entre as variáveis críticas para o desenvolvimento cognitivo,
a saber: a maturação, a experiência, a interação social e a equilibração regulam
o curso do desenvolvimento (Wadsworth, 1993). Os testes de Piaget, ao contrário
dos testes psicométricos usados até então, tentavam acessar, não o que sabemos
(o produto), mas como sabemos ou pensamos (o processo), ou como as
pessoas obtêm e usam a informação para resolver problemas e como adquirem o
conhecimento (Weinberg, 1989).
Piaget foi também um dos primeiros estudiosos a estabelecer uma
teoria interativa da inteligência (Clark, 1992). Segundo ele, todo o
desenvolvimento cognitivo depende tanto da contribuição genética quanto da
qualidade do ambiente em que se desenvolve. Esta posição tem hoje inúmeros
adeptos, pois, como pontua Plomin (1989), as mais recentes pesquisas suportam a
noção de que as influências genéticas sobre o comportamento são multifatoriais,
envolvendo de igual maneira a transmissão hereditária e o ambiente.
A despeito de consideráveis progressos na área e da adição de
inúmeros resultados de pesquisa sobre o desenvolvimento da inteligência, as
tecnologias dos testes mentais ainda permanecem virtualmente as mesmos,
largamente dominadas pela perspectiva psicométrica (Weinberg, 1989). A Escala
Wechsler de Inteligência, por exemplo, adaptada e revista, assim como o teste
Stanford-Binet são os dois testes mais amplamente utilizados para o
levantamento das necessidades especiais das crianças no âmbito educacional,
sendo úteis para medir alguns dos mais importantes aspectos da inteligência
(Snyderman & Rothman, 1990). Segundo Weinberg (1989), os testes fazem parte
do dia-a-dia da cultura americana, sendo utilizados tanto no âmbito educacional
quanto no organizacional, determinando políticas e desempenhando importante
papel para a alocação de recursos e oportunidades em toda a sociedade. O QI é
ainda o grande responsável na determinação dos rótulos de “retardamento” ou
“superdotação”, assim como para definir quem deve receber educação especial e
outras oportunidades educacionais. No entanto, a discussão que paira hoje não
se refere apenas ao valor dos testes, mas sim a uma cautela no seu uso
indiscriminado ou isolado. Questionado o conceito de inteligência, coloca-se em
evidência outros métodos que poderiam facilitar a aprendizagem e o
desenvolvimento infantil, e outras intervenções educacionais são planejadas
para ajudar o aluno a desenvolver de forma mais plena o seu potencial e interagir
com mais recursos às mudanças e desafios dos dias atuais.
A necessidade de se buscar atingir altos padrões de desenvolvimento,
inclusive para capacitar um país para competir adequadamente com outros, leva à
busca da excelência, a qual se referem Maker e Schiever (1984) ao analisarem os
relatórios americanos “A Nation of Risk” e “Action for Excellence”,
ambos de 1983. As autoras partem do princípio de que a busca da excelência
(definida como as competências necessárias para o futuro) é um desafio que as
escolas devem enfrentar, e para isto devem preparar os alunos para lidar
adequadamente com o futuro, levando-os a aprender e adquirir novas habilidades,
e focalizando habilidades de pensamento de “ordem superior”, como análise,
síntese e avaliação. Na concepção dessas autoras, o aluno superdotado é aquele
que melhor condição tem de entender princípios subjacentes às disciplinas acadêmicas
tradicionais e buscar aplicá-los de forma inovadora em áreas diversas,
desenvolvendo soluções criativas para os problemas que o futuro oferecerá.
A concepção anterior de inteligência dá, aos poucos, lugar a
outras concepções. Novas teorias se formam, e aquela visão unicista dá lugar a
visões pluralísticas e dinâmicas. Diferentes definições surgem para a questão
da superdotação, que sugerem novas implicações para os programas educacionais especiais.
Vamos considerá-las a seguir.
As diferentes definições de superdotação
No Brasil, a definição oficial de superdotação foi proposta por
uma equipe de “experts” em educação especial que veio ao nosso país como
consultores do Ministério da Educação, sendo a mesma adotada nos Estados Unidos
e recomendada por Marland ao Congresso em 1972 (Alencar & Blumen, 1993, p.
850):
“São consideradas
crianças portadoras de altas habilidades as que apresentam
notável desempenho
e/ou elevada potencialidade em qualquer dos seguintes
aspectos, isolados ou
combinados: capacidade intelectual superior; aptidão
acadêmica específica;
pensamento criador ou produtivo; capacidade de liderança;
talento especial para
artes visuais, artes dramáticas e música; capacidade
psicomotora”.
Segundo Alencar (1986) estes aspectos podem ser assim
compreendidos:
- Habilidade intelectual geral: inclui indivíduos
que demonstram características tais como: curiosidade intelectual, poder
excepcional de observação, habilidade de abstrair mais desenvolvida e atitude
de questionamento.
- Talento acadêmico: inclui aqueles que
apresentam um desempenho excepcional na escola, que se saem muito bem em testes
de conhecimento e que demonstram alta habilidade para as tarefas acadêmicas.
- Habilidades de pensamento criativo: inclui
alunos que apresentam idéias originais e divergentes, que demonstram uma
habilidade para elaborar e desenvolver suas idéias originais e que são capazes
de perceber de muitas formas diferentes um determinado tópico.
- Liderança: inclui os estudantes que emergem como os
líderes sociais ou acadêmicos de um grupo, e que se destacam pelo uso do poder,
autocontrole e habilidade em desenvolver uma interação produtiva com os demais.
- Artes visuais e cênicas: engloba indivíduos que
apresentam habilidades superiores para pintura, escultura, desenho, filmagem,
dança, canto, teatro e para tocar instrumentos musicais.
- Habilidades psicomotoras: indivíduos que
apresentam proezas atléticas, incluindo também o uso superior de habilidades
motoras refinadas e habilidades mecânicas.
Embora a definição de Marland seja útil por chamar a atenção para
uma ampla gama de habilidades que devem ser incluídas numa definição de
superdotação, ela é criticada por vários autores, como Mönks e Mason (1993),
Feldhusen e Jarwan (1993) e Renzulli (1978; 1986), com relação aos seguintes
fatores: a) a definição não abarca fatores não-intelectivos, como a motivação,
por exemplo; b) as seis categorias incluídas na definição não são paralelas
(aptidão acadêmica específica e talento para artes, por exemplo, chamam a
atenção para áreas da atividade humana onde os talentos e habilidades se
manifestam, enquanto as outras categorias aproximam-se mais de processos que
podem se manifestar em áreas de desempenho); c) a criatividade e a liderança
não podem ser consideradas à parte de uma determinada área de desempenho; d) a
definição tende a ser mal-interpretada e as pessoas continuam a usar a alta inteligência
e pontuações em testes de aptidão como requisitos mínimos de entrada nos
programas para superdotados. e) falta uma melhor operacionalização das
diferentes formas de superdotação.
Vários autores defendem a importância de se definir o que vem a
ser “superdotação” ou “talento”, principalmente porque a definição determinará
que tipo de estudante será selecionado para os programas especiais, e quais
ficarão à margem do atendimento especial (Davis & Rimm, 1989; Gagné, 1985;
Hany, 1993). Gagné (1993) é um dos autores que diferencia os constructos
“superdotação” e “talento”. Para ele, superdotação corresponde à
competência distintamente acima da média em um ou mais domínios da aptidão
humana, enquanto o talento corresponde ao desempenho distintamente acima
da média em um ou mais domínios da atividade humana. A emergência de um talento
resulta da aplicação de uma ou mais aptidões ao domínio de um conhecimento e
habilidades em um campo particular, mediado pelo suporte de catalisadores
intrapessoais (motivação, autoconfiança), ambientais (família, escola,
comunidade), assim como pela aprendizagem sistemática e prática extensiva.
Na opinião de Tannembaum (1991), um indivíduo só poderá ser
considerado verdadeiramente superdotado se apresentar o conjunto dos seguintes
fatores: 1) um intelecto geral superior (alto fator g ou alto QI); 2)
aptidões especiais em algum domínio ou área do conhecimento; 3) um conjunto de
traços não intelectivos (como motivação intrínseca, independência, coragem para
correr riscos, autoconceito positivo e meta-aprendizagem - ou habilidade para
compreender o próprio processo de aprender); 4) um ambiente desafiador e facilitador,
que ajude a criança a se desenvolver num clima de afeto, desafio e encorajamento;
um ambiente consoante com o próprio Zeitgeist (espírito dos tempos), a
fim de que o talento possa ser reconhecido e apreciado; 5) sorte em momentos
decisivos da vida, pois muito do sucesso futuro do indivíduo provêm de fatores
não preditivos, de se estar no local certo no momento adequado, ou de estar com
a mente preparada para reconhecer uma experiência única ou rara. Neste sentido,
Tannembaum (1991) acredita que “a sorte interage com a inspiração e a
transpiração de forma mutuamente dependente” (p. 42). Para o autor, estes cinco
fatores interagem em diferentes formas em cada domínio de talento, não podendo
ser considerados em isolamento um do outro.
Feldhusen (1992) focaliza a superdotação em uma perspectiva
interacionista. Para este autor, os talentos surgem de uma habilidade geral,
sendo o resultado de uma confluência de disposições genéticas, experiências no
lar e na escola, estilos de aprendizagem e interesses únicos do estudante.
Considera ele que os fatores genéticos são determinantes das forças potenciais
do indivíduo, sendo a genética que estabelece os limites do desenvolvimento dos
talentos. Assim, os indivíduos que atingem níveis superiores do desenvolvimento
do talento já os exibirão em idades precoces. Mas, além disso, as habilidades,
aptidões, e inteligências emergem como resultado das experiências, motivações e
estilos de aprender de cada um. E, finalmente, os talentos específicos emergem
quando as habilidades de “insight” criativo encontram-se aliados a uma base de
conhecimento funcional e a habilidades de criatividade metacognitivas.
Renzulli (1986) considera que uma definição de “superdotação” deve
seguir os seguintes critérios: a) deve basear-se em resultados de pesquisas
sobre as características dos indivíduos com alta habilidade, e não em noções
romantizadas e opiniões sem suporte científico; b) deve servir como guia para a
seleção e/ou desenvolvimento de instrumentos e procedimentos no processo de identificação;
c) deve dar direção e se relacionar de forma lógica aos programas delineados; e
d) deve ser capaz de gerar estudos de pesquisas que irão testar a validade da
definição.
Há um consenso entre vários pesquisadores (por exemplo, Feldhusen
& Jarwan, 1993; Gagné, 1985; Janos & Robinson, 1985; Horowitz &
O’Brien, 1985) de que as concepções conflitivas sobre as definições de
superdotação, inteligência e talento são responsáveis pelos desacordos
existentes na área. As razões para este desacordo se devem principalmente às
diferenças de abordagem entre os diversos autores sobre diferentes aspectos
como: a) a variedade de habilidades e comportamentos aos quais o termo “superdotação”
é aplicado; b) a medida de superdotação utilizada; c) o ponto de corte no teste
no qual a criança é considerada superdotada; d) a natureza do grupo de
comparação. Além disso, a identificação deste grupo se torna mais difícil à
medida que a atenção se desloca da tradicional definição da inteligência para
as perspectivas mais amplas que vêem a superdotação como um processo
multifacetado.
A superdotação como um processo multifacetado
1. A teoria de Sternberg
Sternberg (1986; 1991) apresenta uma teoria triárquica para o
entendimento do comportamento considerado extraordinariamente inteligente. Sua
teoria se divide em três sub-teorias interrelacionadas, que se combinam tanto
para formar uma ampla base de explicação da inteligência quanto para
especificar o tipo de tarefa que é mais apropriada para medi-la.
A primeira delas é a subteoria componencial, que especifica
os mecanismos ou componentes mentais responsáveis pelo planejamento, execução e
avaliação do comportamento inteligente, atuando através do processamento de
informação. A segunda subteoria proposta pelo modelo triárquico - subteoria
experiencial - propõe que uma tarefa mede a “inteligência” na medida em que
requer a habilidade de lidar com a novidade e a habilidade de automatizar o
processamento da informação. Uma pessoa seria mais inteligente, neste ponto de
vista, quanto mais rápida e adequadamente puder lidar com as novidades que o
ambiente solicitar; quanto mais eficiente for a automatização do seu
desempenho, mais recursos adicionais são dirigidos para as situações que
demandam mais novidade. Assim, os dois processos podem operar lado a lado,
sendo que quanto mais eficiente for o indivíduo em um deles, mais recursos terá
para lidar com as demandas do outro.
A terceira subteoria é a subteoria contextual, que tem
cinco pressupostos: 1) a inteligência está relacionada à relevância do
comportamento para alguém, em sua vida real; a inteligência não pode ser desvinculada
do contexto sociocultural, que faz com que um indivíduo possa ser considerado
inteligente em uma cultura, mas não em outra, em direta dependência do que é
valorizado em cada uma; 2) a inteligência é proposital, relacionada a um
objetivo, não importa se consciente ou não; 3) a inteligência é adaptativa, o
que consiste na tentativa de um melhor encaixe do indivíduo no seu ambiente que
resulte em satisfação; 4) a inteligência envolve dar forma ao ambiente,
modificá-lo, de modo que ele se torne mais adequado à si próprio; 5) a
inteligência envolve a seleção de ambientes, ou seja, quando a adaptação não é possível
e a modificação falha, o indivíduo deve selecionar outro ambiente no qual ele
possa, potencialmente, se encaixar melhor e maximizar sua participação.
A teoria triárquica mostra grande relevância para a questão da
avaliação da habilidade intelectual superior. Ela assinala que a inteligência
não é um constructo único e simples, e mostra quais são as habilidades que
devem ser aprendidas, estimuladas ou ensinadas para que a inteligência atinja
seus níveis mais altos. A consciência da forma que cada um tem de processar
informação é importante, tanto para que o aluno possa concentrar seus próprios
esforços no que tem de bom, adequado e mais desenvolvido, quanto para se
conscientizar de seus pontos fracos e buscar formas alternativas de
compensá-los. Tais estratégias têm a inegável vantagem tanto de impulsionar o
ensino quanto de tornar o aluno promotor de seu próprio desenvolvimento.
2. A teoria de Gardner
Howard Gardner e seus colegas do “Harvard Project Zero”
desenvolveram uma teoria pluralística da inteligência - Teoria das
Inteligências Múltiplas (1985) - que define inteligência como uma
habilidade ou conjunto de habilidades que permitem ao indivíduo resolver
problemas ou modelar produtos como conseqüência de um ambiente ou cultura
particular (1994; 1995; Ramos-Ford & Gardner, 1991). A teoria estabelece,
inicialmente, que a competência cognitiva humana pode ser melhor descrita como
sendo um conjunto de sete habilidades, talentos ou capacidades mentais,
estabelecidas como universais na espécie humana, quais sejam: a inteligência
lingüística; a lógico matemática; a espacial; a corpo-cinestésica; a musical; a
interpessoal e a intrapessoal. Posteriormente, em 1999, Gardner aumentou-as
para oito, a partir da identificação e comprovação da inteligência
naturalística ou biológica, acrescentando-a ao rol das inteligências múltiplas.
Cada inteligência é relativamente autônoma uma das outras, tendo
sido selecionadas através de exaustivas pesquisas e evidências em diversas
fontes: o conhecimento a respeito do desenvolvimento normal e do
desenvolvimento em indivíduos talentosos; as informações sobre o colapso das
capacidades cognitivas nas condições de dano cerebral; os estudos sobre
populações excepcionais, incluindo prodígios, idiotas-sábios (“idiot-savants”)
e autistas; dados sobre a evolução do processo de cognição humana ao longo do
milênio; a história evolutiva no decorrer da ontogenia; as considerações
culturais cruzadas entre testes; e os estudos de treinamento psicológico,
particularmente as medidas de transferência e generalização através das tarefas
(Gardner, 1995).
Segundo Gardner (1994; 1995; Ramos-Ford & Gardner, 1991), a inteligência
lingüística é a que mais amplamente tem sido medida nos tradicionais testes
de inteligência. No adulto, a capacidade lingüística pode ser exemplificada na
figura do escritor, novelista, poeta ou ensaísta; já na criança, a capacidade neste
domínio pode se testada pela sua habilidade em contar ricas e coerentes
histórias e relatar de forma acurada suas experiências, e não simplesmente na
habilidade de repetir sentenças e definir palavras, como se tem feito
tradicionalmente nos testes verbais.
A inteligência lógico-matemática é, juntamente com a
inteligência lingüística, a principal base para os testes de QI, sendo
considerada o arquétipo da inteligência pura ou faculdade de resolver
problemas. Este tipo de inteligência está presente no raciocínio dedutivo e
indutivo, na computação e outros campos, e presente em profissões como a do
matemático ou físico. No entanto, há idiotas sábios (“idiot-savants”) que
realizam grandes façanhas de cálculo, a despeito de suas deficiências em outras
áreas. A criança demonstra inteligência lógico matemática na facilidade com que
lida com contas, cálculo e notações matemáticas.
A inteligência musical , assim como a lingüística, é, para
Gardner, uma competência intelectual separada, que não depende dos objetos
físicos do mundo, podendo ser elaborada em graus consideráveis através da
exploração e do aproveitamento do canal oral-auditivo. Evidências de várias
culturas apóiam a noção de que a música é uma faculdade universal, sendo que o
canto dos pássaros sugere o vínculo desta faculdade com outras espécies. O
adulto demonstra sua habilidade nesta área através da sensibilidade ao ritmo,
textura e timbre; da habilidade de ouvir temas na música; através do desempenho
musical e composição.
A inteligência espacial engloba a capacidade de representar
e manipular configurações espaciais. O arquiteto, o engenheiro, o mecânico, o
pintor, o navegador e o jogador de xadrez são exemplos de pessoas que colocam
em prática, no seu trabalho, este tipo de habilidade, embora de diferentes
maneiras. Na criança pequena, a capacidade neste domínio pode ser vista com
relação à sua facilidade em lidar com quebra-cabeças ou outros jogos de
resolução de problemas espaciais.
A inteligência corporal cinestésica refere-se à capacidade
do corpo ou parte dele em desempenhar uma tarefa ou modelar um produto. Esta
inteligência se manifesta no dançarino, no atleta, no mímico, no cirurgião, por
exemplo. A criança inteligente “corpo-cinestesicamente” demonstra sua
habilidade movendo-se expressivamente em resposta a diferentes estímulos
musicais e verbais, ou demonstrando habilidades atléticas em esportes ou no
mesmo em atividades de brinquedo. Para Gardner, constitui uma evidência dos
aspectos cognitivos do uso do corpo a capacidade de usá-lo para expressar uma
emoção (como na dança), disputar um jogo (como no esporte) ou criar um novo
produto.
Da mesma forma que a inteligência corporal-cienstésica, as outras
duas inteligências propostas por Gardner - a interpessoal e a intrapessoal -
não são usualmente apontadas como tais nos tradicionais testes de inteligência,
mas o autor as considera no mesmo nível das demais. Gardner considera que a inteligência
interpessoal está baseada numa capacidade do indivíduo em perceber
distinções entre os outros, especialmente contrastes com relação a seus estados
de ânimo, temperamentos, motivações e intenções. Em formas mais avançadas, essa
inteligência permite que o adulto experiente perceba as intenções e desejos de
outras pessoas, mesmo que elas os escondam.
Essa capacidade pode aparecer deforma altamente sofisticada em
líderes religiosos ou políticos, professores, terapeutas e pais. Crianças com
capacidades interpessoais bem desenvolvidas são, em geral, líderes e
organizadoras em sala de aula, conscientes de como outras crianças preferem
utilizar seu tempo, e sensíveis às necessidades e sentimentos dos outros.
A inteligência intrapessoal refere-se ao entendimento de si
próprio, o acesso ao sentimento do valor da própria vida, à gama das próprias
emoções, à capacidade de discriminar essas emoções e eventualmente rotulá-las e
utilizá-las como uma maneira de entender e orientar o próprio comportamento. A
pessoa com boa inteligência interpessoal possui um modelo acurado de si mesma
e, como reflete aspectos da vida privada, é mais facilmente transmitida através
da música, da linguagem, das artes visuais, etc. Gardner acredita que tanto a
faculdade interpessoal quanto a intrapessoal são indicativas de inteligências
que se tornam cada vez mais relevantes para o indivíduo e a espécie, estando
fundidas no senso de eu do indivíduo.
Segundo Gardner (1995), a independência de cada inteligência
significa que um alto nível de capacidade em uma inteligência não requer um
nível igualmente elevado em outra inteligência, noção esta que vividamente
contrasta com as tradicionais medidas de QI. Da mesma forma, um indivíduo pode
não ser especificamente bem-dotado em qualquer uma das inteligências e, no
entanto, em virtude de uma peculiar combinação de capacidades, possa vir a
ocupar alguma posição na sociedade de forma destacada - talvez mesmo por uma
questão de saber aproveitar a chance, como também destaca Tannembaum (1991).
Assim, torna-se importante, nesta visão, avaliar a combinação particular de
capacidades que pode destinar o indivíduo para determinada posição vocacional
ou ocupação.
Um dos aspectos importantes que a Teoria das Múltiplas
Inteligências levanta diz respeito a avaliação de determinadas inteligências ou
conjunto de inteligências. Segundo a teoria, é importante que a avaliação da
capacidade do indivíduo seja feita com os materiais daquela inteligência,
utilizados tanto para propor quanto para resolver problemas dentro de um
determinado domínio - por exemplo, a avaliação matemática deveria apresentar
problemas em ambientes matemáticos; na música, os problemas deveriam estar
inseridos num sistema musical, e assim por diante. Uma evidência importante da
habilidade ou do talento é dada quando o indivíduo pode escolher, em meio a
materiais variados, capazes de estimular várias inteligências, os que mais
chamam a sua atenção e explorar de forma mais aprofundada.
Posteriormente pode-se propor outras situações de avaliação que
possam levar ao entendimento mais completo do tipo de inteligência apresentado
por cada criança em situação de escolha. No âmbito escolar, a avaliação pode se
estender por todo um ano letivo, pois é através de jogos especialmente
fabricados para acessar cada tipo de inteligência e de toda uma estimulação por
parte de professores treinados, que cada inteligência vai gradualmente
emergindo e se evidenciando no comportamento infantil.
De forma complementar, também nossos próprios estudos (Virgolim
& Alencar, 1993) chamam a atenção para a importância de um ambiente
estimulador, onde o aluno tem chance de elaborar e testar hipóteses, discordar,
propor soluções alternativas, brincar com idéias, manipular materiais diversos
e divulgar suas próprias idéias e produções. Este tipo de ambiente, além de ser
altamente estimulador da capacidade criadora e motivacional do aluno, permite a
ele trabalhar dentro de seu próprio estilo cognitivo em cada domínio, e permite
ao professor conhecer melhor as capacidades e dificuldades de cada um em sala
de aula. Informações valiosas podem ser assim passadas para professores, pais e
para a própria criança, como guia para as atividades que podem ser
desenvolvidas em diferentes graus pelo aluno.
3. A teoria de Renzulli
Assim como Gardner e Sternberg, Renzulli acredita que a
inteligência tem múltiplas facetas, e a escola se encontra em posição chave
para desenvolver e propiciar ao aluno as condições ideais de desenvolver suas
habilidades, aptidões e talentos em direção à sua auto-realização como ser
humano.
Segundo Renzulli (1986), o aluno pode se encaixar em duas amplas
categorias de habilidades superiores: a superdotação escolar e a superdotação
criativa-produtiva. O primeiro tipo pode também ser chamada de “habilidade
do teste ou da aprendizagem da lição”, pois é o tipo mais facilmente
identificado pelos testes de QI para a entrada nos programas especiais. Como as
habilidades medidas nos testes de QI são as mesmas exigidas nas situações de
aprendizagem escolar, o aluno com alto QI também tira boas notas na escola. A
ênfase neste tipo de habilidade recai sobre os processos de aprendizagem
dedutiva, treinamento estruturado nos processos de pensamento, e aquisição, estoque
e recuperação da informação. Já a habilidade criativa-produtiva implica no
desenvolvimento de materiais e produtos originais; aqui, a ênfase é colocada no
uso e aplicação da informação - conteúdo – e processos de pensamento de forma
integrada, indutiva, e orientada para os problemas reais. O aluno, nesta abordagem,
é visto como um “aprendiz em primeira-mão”, no sentido de que ele trabalha nos
problemas que têm relevância para ele e são considerados desafiadores
(Renzulli, 1986).
No entanto, o que se percebe é que os alunos tradicionalmente
selecionados para os programas se encaixam no primeiro grupo, enquanto grande
parte daqueles que permanecem abaixo do ponto de corte dos resultados nos testes
(geralmente os do segundo grupo) permanecem do lado de fora, sendo negado a eles
a oportunidade de ter acesso a serviços especiais. Renzulli (1986) considera
ainda que o propósito da educação dos portadores de altas habilidades é “fornecer
aos jovens as máximas oportunidades de auto-realização através do
desenvolvimento e expressão de uma ou mais áreas de desempenho onde o potencial
superior pode estar presente” (p. 59), e de formar um contingente de pessoas
capacitadas para ajudar a resolver os problemas da civilização contemporânea,
tornando-se produtores de conhecimento e arte, mais do que meros consumidores
da informação existente. Renzulli considera que a habilidade superior é uma
condição que pode ser desenvolvida em algumas pessoas se uma
apropriada interação ocorrer entre ela, seu ambiente e uma especial área do
conhecimento humano. Desta forma, Renzulli acredita que o termo “superdotado” é
inapropriado e contraprodutivo para fins de identificação, e propõe que a
ênfase deva ser retirada do ser/não ser portador de altas habilidades para
“desenvolver comportamentos” de superdotação naqueles jovens que têm o maior
potencial para se beneficiar de serviços de educação especial. Sua proposta é
de dar ao conceito o dinamismo que ele se reveste, por variar tanto dentro das
pessoas quanto em situações de aprendizagem/desempenho.
O que produz a habilidade superior? O modelo proposto por Renzulli
pretende responder a esta questão, considerando superdotado o aluno que
apresentam um conjunto bem-definido de três aglomerados de traços: habilidade
acima da média (não necessariamente superior), envolvimento com a tarefa (ou
motivação) e criatividade. Nenhum destes traços isolados são garantia de que o
indivíduo apresentará comportamentos superdotados, mas sim a complexa interação
que possa haver entre eles (Renzulli, 1986).
No modelo de Renzulli, o termo “habilidade acima da média”
se refere tanto a habilidades gerais quanto a específicas, sendo “habilidade
geral “ definida como “a capacidade de processar informação, integrar
experiências que resultam em respostas apropriadas e adaptativas a novas
situações, assim como a capacidade de se engajar em pensamento abstrato”; habilidade
específica consiste “na capacidade de adquirir conhecimento e habilidades,
ou a habilidade de desempenho em uma ou mais atividades de um tipo
especializado e dentro de uma variação restrita” (Renzulli, 1986, p. 66).
Envolvimento com a tarefa se refere à energia que o
indivíduo investe em um problema ou tarefa ou numa área específica de
desempenho, e que pode ser traduzido em termos como perseverança, paciência, trabalho
árduo, prática dedicada, autoconfiança e crença na própria habilidade de
desenvolver um trabalho importante.
A criatividade tem sido apontada como um dos traços mais
presentes nos indivíduos considerados proeminentes; no entanto, devido à
dificuldade de acessá-la através de testes confiáveis de criatividade, métodos
alternativos têm sido propostos, como a análise dos produtos criativos e
auto-relatos dos estudantes. No entanto, torna-se um desafio determinar os
fatores que levam o indivíduo a usar seus recursos intelectuais, motivacionais
e criativos de forma a manifestar-se em um nível superior de produtividade.
Renzulli (1992) acredita que, às portas do novo milênio, é
necessário explorar novos paradigmas de pesquisa que focalizem sua atenção no
estudo de indivíduos jovens em situações de aprendizagem práticas e realistas,
onde a produtividade criativa seja valorizada e premiada. Considera também
essencial considerar os programas especiais como locais que constróem a
superdotação, e não meramente a identificam e alimentam. Sua opinião é a de
que, se continuarmos a conduzir programas baseados em alta medida na
tradicional medida de QI, estaremos sufocando o desenvolvimento de um manancial
de novos e inovadores programas, onde a pesquisa pioneira teria seu lugar.
III. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES
Mais de um século se passou desde a publicação de “Hereditary
Genius”, de Galton e quase um século desde que o primeiro teste de QI foi
apresentado por Binet. Apesar da grande influência que os testes exerceram na
maneira ocidental de se conceber a inteligência, nos deparamos hoje com um
grande avanço nas pesquisas e nos paradigmas que estão subjacentes à nossa
concepção de superdotação. De acordo com Sternberg (1986) e Heller (1993),
precisamos hoje pensar não somente em termos dos múltiplos componentes da
superdotação, como também nos múltiplos tipos de superdotação. Torna-se, assim,
mais produtivo focalizar nossa atenção nos talentos ou aptidões especiais do
que procurar por uma superdotação geral, mesmo porque o que se procura com a
identificação é uma melhor adequação dessa população com os diversos programas
e serviços educacionais especialmente talhados para diferentes tipos de
superdotação (Feldhusen & Jarwan, 1993; Hany, 1993; Renzulli & Reis,
1991). Além disso, a identificação deve ser vista como um processo contínuo, um
conjunto de habilidades que emergem e se desenvolvem à medida em que a criança
amadurece; e deve preferencialmente apontar os pontos fortes, aptidões e
talentos de cada criança, em detrimento de suas fraquezas e incapacidades, como
tradicionalmente se tem feito.
Numerosas pesquisas têm demonstrado que a medida tradicional de QI
não é um bom preditor do sucesso futuro de um indivíduo, apesar de se
relacionar significativamente com a realização escolar (Tannembaum, 1991;
Weinberg, 1989). Trost (1993), por exemplo, considera que não há um preditor único
da superdotação, sendo que o desempenho superior é o produto de uma interação
intra-individual altamente complexa de uma variedade de traços (habilidades
cognitivas e não-cognitivas, atributos motivacionais e emocionais, variáveis de
personalidade, autoconceito elevado), assim como de uma interação entre estes
traços individuais e fatores ambientais (influências da família, pares, escola,
universidade, experiências extracurriculares, a mídia, etc.). Há que se
realizar estudos longitudinais mais amplos, da envergadura do que se propôs
Terman (1975) para que outros preditores da realização superior venham a ser
conhecidos.
Concordamos também com Feldhusen (1992) que concebe a
identificação da superdotação como um processo contínuo, no qual os
professores, os pais e a próprio aluno entendem cada vez mais o seu potencial
superior e estão prontos a ajudá-la a encontrar o foco de seu desenvolvimento
futuro, através de programas ecléticos, que usam uma variedade de recursos para
encontrar, desenvolver e alimentar os talentos do jovem. Buscamos programas que
possam se adequar às necessidades individuais de cada um, de forma a torná-los,
como sugere Betts (1991) aprendizes independentes e auto-direcionados, com habilidades
e atitudes positivas nos domínios cognitivo, emocional e social. O aluno deve
aprender a explorar suas habilidades, reforçando seus pontos fortes e
aperfeiçoando os pontos fracos; aprender a coordenar e equilibrar os diferentes
aspectos de suas habilidades e, conforme pontua Sternberg (1991), reconhecer
seus metacomponentes e trabalhar no sentido de desenvolvê-los de forma bem
integrada.
Além disso, torna-se necessário - e neste ponto concordamos
plenamente com Gardner (1995), que as práticas educacionais atuais sofram
mudanças importantes, às portas como estamos do terceiro milênio. É essencial que
a idéia das inteligências múltiplas façam parte da formação de professores.
Segundo Gardner, “se a sensibilidade às diferentes inteligências ou estilos de
aprendizagem se tornar parte dos modelos mentais construídos pelos novos
professores, a próxima geração de instrutores provavelmente será muito mais
capaz de atingir cada aluno de maneira mais direta e efetiva” (1995, p. 213).
As recomendações de Renzulli (1992) quanto ao importante papel
desempenhado por um professor competente, motivado, apaixonado pelo que ensina,
sensível às diferenças individuais cognitivas de seus alunos, não podem ser
desprezadas se quisermos obter um ensino de alta qualidade. Em relação ao
Brasil, em particular, é necessário que o país como um todo abra suas portas às
modernas evidências de pesquisa sobre o indivíduo portador de altas
habilidades, e que considere seu potencial também como promotor do
desenvolvimento tecnológico, cultural e educacional da nossa nação. Não podemos
desperdiçar nossas inteligências; há por toda parte um rico manancial de jovens
esperando por melhores oportunidades e desafios às suas capacidades.
Precisamos de uma política educacional mais ampla, mais
inteligente, voltada para as necessidades educacionais de todos os indivíduos,
dando-lhes oportunidades concretas de se desenvolver adequadamente,
engajando-os em programas especiais bem planejados. Na área acadêmica, há tudo
por se fazer. As universidades que, com raríssimas exceções, nem mesmo contam
com disciplinas nessa área, precisam abrir espaço para o estudo da inteligência
e das habilidades superiores. Precisa-se de pesquisadores que iniciem o
trabalho que há décadas se desenvolve nos Estados Unidos e Europa. Precisamos
desenvolver e validar testes na área, buscar novos procedimentos, desenvolver
pesquisas com amostras brasileiras. Enfim, precisamos dar atenção a uma área
que ainda se mostra tabu em nossa cultura. Vencer medos e preconceitos é o
desafio que nos espera.
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