domingo, 21 de abril de 2013

O INDIVÍDUO SUPERDOTADO: HISTÓRIA, CONCEPÇÃO E IDENTIFICAÇÃO


 Blog “Genialidade e Superdotação”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.


 

 Autoria:

Angela M.R.Virgolim. Doutoranda de Educação Especial da Universidade de Brasília (1997).


Adaptação:

Superdotado Álaze Gabriel.


RESUMO



Este artigo tem como objetivo enfocar as atuais concepções sobre superdotação, abordando os aspectos históricos da inteligência e o desenvolvimento do interesse pelo estudo do indivíduo portador de altas habilidades. As diversas definições e formas de identificação são discutidas, assim como as teorias de Robert Sternberg, Howard Gardner e Joseph Renzulli com relação ao tema. O artigo aponta também para a necessidade da ampliação desta área no Brasil, através do incentivo à pesquisa, e da implantação de programas mais amplos e efetivos que alcancem uma parcela maior de nossa população.


I. INTRODUÇÃO


Percebe-se, principalmente nas últimas décadas, um extenso movimento, no sentido de favorecer uma educação que estimule o desenvolvimento do indivíduo de acordo com suas necessidades educacionais, o que certamente inclui a promoção da atualização do potencial dos portadores de altas habilidades. Cada vez mais, estes indivíduos estão sendo percebidos como peças-chave no desenvolvimento dos países, constituindo parte essencial de um sistema educacional mais democrático e humanitário. Embora haja sempre os que defendem a prioridade da alocação de fundos para a educação dos portadores de deficiência, a educação do indivíduo superdotado não deve ser vista como competindo com estes ideais, mas como tendo seu próprio espaço neste mesmo complexo de métodos e metas educacionais (Cropley, 1993).

No nosso país, os esforços feitos neste sentido ainda são tímidos e ineficientes, açambarcando uma ínfima porção da população brasileira. Atualmente contamos com poucos programas para a identificação e educação do indivíduo superdotado, sendo que muitos deles, iniciados no final da década de 70, foram desativados ou modificados, passando a atender segmentos ainda menores da população. Descrevendo os poucos programas ainda existentes no Brasil, Alencar e Blumen (1993) assinalam a necessidade, num país de proporções continentais como o nosso, de se desenvolver programas mais amplos e efetivos que alcancem uma parcela maior da nossa grande população. A necessidade de identificação precoce de crianças que apresentam altas habilidades e talentos, programas educacionais especiais, aliados à preparação apropriada de professores para lidar com tal grupo, e o desenvolvimento de pesquisas na área são algumas das recomendações que as autoras fazem para o desenvolvimento eficaz deste campo no país.

Podemos encarar esta área como ainda nova no Brasil. Os programas que temos sofrem dificuldades variadas, como a falta de recursos governamentais, falta de materiais adequados às necessidades desta população especial, falta de um conhecimento mais sólido sobre o tema por parte dos profissionais de educação e da sociedade em geral. Além disso, o desconhecimento de técnicas eficazes e modernas de identificação, a falta de currículos e programas mais adequados aos diferentes níveis de habilidade nos diferentes campos, a inexistência de programas ao nível de escolas particulares de 1o e 2o graus, a falta de treinamento especializado dos professores, tanto das escolas regulares quanto dos programas específicos, aliado ao desconhecimento de pesquisas e programas recentes para superdotados nos diferentes países, fazem com que as poucas iniciativas se percam no vazio, deixando de contribuir de forma mais efetiva para o processo educacional como um todo e para o avanço tecnológico e cultural do país.

Uma vez que a literatura sobre o tema é escassa no Brasil, e poucas são as pesquisas desenvolvidas sobre o indivíduo superdotado, o presente artigo objetiva enfocar as atuais concepções sobre o tema, abordando aspectos históricos da inteligência e da superdotação, e delineando o desenvolvimento do interesse pelo seu estudo através dos tempos. Serão também discutidas as diversas definições e formas de identificação da superdotação, mostrando como diferentes teóricos e pesquisadores percebem o tema.


A Terminologia


Uma das dificuldades do tema aqui tratado é a própria nomenclatura ou terminologia utilizada para designar a pessoa portadora de altas habilidades e talentos. No Brasil, o termo superdotado, de uso corrente, produz confusão ao sugerir a idéia de “super”, ou de capacidades que se situam em um nível muito além das apresentadas pelo ser humano comum. O termo se torna inconveniente até mesmo no processo de identificação, quando se busca os extremos em detrimento de um contínuum de comportamentos. Da mesma forma, o termo em inglês gifted ou giftedness se refere a gift, que se traduz por “presente, dádiva, dom”, sugerindo que a habilidade superior é um dom natural ou dádiva divina.

Estes conceitos têm sido criticados (por exemplo, Alencar, 1986; Silva, 1992) e novos termos propostos. Em 1994 a Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação e do Desporto sugeriu o uso do termo “indivíduo portador de altas habilidades”, situando o indivíduo como portador de uma característica que o diferencia de outros enquanto comportamento, mas não como pessoa. No presente estudo usaremos os dois termos intercambiavelmente, pretendendo designar aquele indivíduo que possui capacidades, em uma ou mais áreas, distintamente acima da média de seus pares.


II. VISÃO HISTÓRICA SOBRE A INTELIGÊNCIA E SUPERDOTAÇÃO


Crenças e mitos sobre a superdotação


Os indivíduos que se destacam por suas habilidades superiores sempre foram motivo de curiosidade. Independentemente de quando ou em que campo do conhecimento o ser humano se destaca por sua excelência, há sempre um movimento de reação, seja ele de interesse, aceitação, desconfiança ou antipatia – em alguns casos até mesmo inveja por parte de pessoas mal-intencionadas próximas –, dependendo de como é visto pelo seu ambiente sócio-cultural. Enquanto alguns passam para a imortalidade pelas suas contribuições, outros são esquecidos após sua morte (Tannembaum 1983). Seja como for, sempre coube à sociedade determinar qual deles valorar em uma acepção mais elevada, e quais ignorar, havendo uma mudança de tais valores relativamente ao tempo e à cultura. Alguns destes valores sobreviveram e permanecem hoje como resquícios de uma tradição enraizada em crenças populares, que se traduzem por mitos e falsos juízos sobre o que vem a ser a habilidade superior.

Nos séculos XV e XVI, por exemplo, os indivíduos que se destacavam por suas façanhas e proezas eram tidos como inspirados por demônios, apontados como hereges e queimados como bruxos. Já na Renascença, com o advento das novas teorias derivadas da observação e classificação, os demônios foram substituídos pela mente, concebida como função do cérebro e do sistema nervoso, o que deu origem a fortes interesses sobre as diferenças individuais no comportamento mental. A falta de controle emocional, ausência de disposição, desilusões, alucinações, idéias grandiosas e novos “insights”, e qualquer desvio, fosse na direção da insanidade ou da genialidade, representavam, para os médicos, instabilidade mental, assumidos como sintoma de doença nervosa, mórbida e anormal (Grinder, 1985). Esta concepção levou à crença de que crianças precoces estavam destinadas a serem diferentes, fisicamente fracas e neuróticas.

Na metade do século dezenove a questão da hereditariedade foi inserida na equação, pesando para isto as idéias do sociólogo francês Moreau de Tours, considerado “expert” em patologia mental. Segundo Moreau, o gênio seria o resultado de um desvio mórbido de um tipo original, de uma árvore genealógica neuropática; e seus descendentes, “expostos às mesmas influências, rapidamente desceriam ao mais alto grau de degenerescência” (Grinder, 1985). Também os trabalhos de Lombroso e Nisbet, em 1891, apontando para a instabilidade comportamental em grande parte dos homens famosos da história, vieram colaborar para o acréscimo das desconfianças sobre a ligação entre genialidade e “anormalidade” (Tannembaum 1983).


Os primeiros testes mentais


Interessado nas habilidades intelectuais e influenciado pelas idéias evolucionistas de seu primo Charles Darwin, o nobre inglês Sir Frances Galton publicou, em 1869, “Hereditary Genius”, onde procurou demonstrar que as habilidades mentais eram transmitidas da mesma forma que os traços físicos através das gerações. Assim, estudou a transmissão hereditária da eminência pela comparação de várias gerações de homens de mesma família na Grã Bretanha, utilizando como fontes dados censitários e livros biográficos da época, recorrendo a técnicas psicométricas para demonstrar, de forma empírica, que as variações na habilidade intelectual seguiria o padrão de uma curva de probabilidade normal (Grinder, 1985).

Galton também acreditava que a inteligência estivesse relacionada à agudeza dos sentidos, estando condicionada pela seleção natural e pela lei de distribuição das habilidades na mesma família. Assim, em 1884 fundou, em Londres, um laboratório antropométrico de demonstração, onde mais de 9.000 visitantes foram examinados. Sua bateria de “testes mentais” incluía medidas de força física, sensibilidade de visão, discriminação perceptual e de cor, e tempo de reação, pois, para ele, quanto mais sensíveis e perceptivos eram os sentidos, maior o campo no qual o julgamento e o intelecto poderiam agir (Snyderman & Rothman, 1990).

As idéias de Galton foram levadas para as universidades americanas por James M. Cattell, que se interessava por investigar as diferenças individuais na capacidade sensorial sob condições controladas, esperando encontrar entre as correlações uma explicação para a interdependência entre os processos mentais.

Embora nenhuma correlação tenha sido obtida entre essas medidas e grau universitário, usadas pelos pesquisadores como evidência de atividade intelectual complexa, os trabalhos tanto de Galton quanto de Cattell tiveram o mérito de buscar explicações em dados psicométricos quantitativos, ao invés da explicação subjetiva, anedótica e retrospectiva que caracterizava os trabalhos anteriores. Galton introduziu a estatística às ciências sociais, e estabeleceu a psicometria como o método por excelência para o estudo das diferenças individuais do intelecto, notadamente para o estudo da habilidade superior (Grinder, 1985; Snyderman & Rothman, 1990).

Embora não se possa minimizar a importância das investigações de Galton para o estudo das diferenças individuais, foi a partir de seus trabalhos que surgiu a crença na teoria da inteligência fixa. Passou-se a acreditar que havia um relacionamento entre a acuidade visual e inteligência geral, sendo que a inteligência permaneceria intacta desde o nascimento até a morte do indivíduo. Desta forma, poder-se-ia predizer, com exatidão, que tipo de indivíduo uma criança iria se tornar, já desde a infância mais precoce, independentemente de qualquer efeito do seu ambiente. Suas idéias, muito bem aceitas pela comunidade científica da época, permaneceram por quase um século, influenciando até nos dias atuais este campo de conhecimento (Clark, 1992).

Os trabalhos de Galton e Cattell tiveram uma marcante influência nos estudos que, simultaneamente, também fazia Alfred Binet em seu laboratório psicológico em Sorbone, na França. No entanto, Binet reconheceu logo que os processos intelectuais mais complexos, como imaginação e compreensão, não poderiam ser acessados através dos testes sensoriais. A oportunidade de testar empiricamente esta hipótese surgiu quando ele e seu aluno Theodore Simon foram convidados pelo Ministro da Instrução Pública de Paris, em 1904, para desenvolver testes que pudessem assegurar que crianças mentalmente deficientes não fossem inadvertidamente colocadas nas mesmas classes que crianças normais.

O teste desenvolvido pelos dois pesquisadores consistia, então, de uma escala cujos 30 itens estavam organizados em ordem crescente de dificuldade, padronizados para crianças de 3 a 11 anos de idade das escolas parisienses. Os resultados nos testes eram dados, não em termos de um nível absoluto de inteligência, mas pela comparação da idade mental do aluno (eqüivalência de idade com as questões de maior dificuldade corretamente respondidas) ou com sua idade cronológica. As crianças que passavam em testes correspondentes a um ano ou dois abaixo de sua idade cronológica eram identificadas como inferiores ou retardadas; e as que passavam em testes um ano ou dois além de sua idade cronológica eram designadas como superiores ou avançadas. Em 1911, o psicólogo alemão William Stern propôs o uso do termo “quociente mental”, no qual a idade mental da criança é dividida por sua idade cronológica. O Quociente de Inteligência (QI) a que nos referimos hoje em dia é derivado desta medida, sendo o quociente mental multiplicado por 100.

A escala de Binet teve ampla repercussão, principalmente devido ao fato de que funcionou para os objetivos a que se propôs, mostrando-se consistente com outros indicadores de inteligência, como avaliações feitas por professores e pares; além disso, mostrou ser mais eficiente e confiável do que outras medidas anteriormente utilizadas. Binet reconhecia que a inteligência - seja ela o que fosse, pois não se preocupou em defini-la - cresce durante a infância, e era de opinião que o mais frutífero para a psicologia das diferenças individuais seria se concentrar em níveis relativos da inteligência do que tentar medir um conceito tão nebuloso quanto este em termos absolutos (Snyderman & Rothman, 1990).

Em 1910 H. H. Goddard traduziu e aplicou o teste de Binet em 400 crianças “oligofrênicas” de uma escola em New Jersey, EUA, e, satisfeito por sua exatidão, voltou a aplicá-la, em 1911, desta feita com 2000 crianças normais. Completou-se assim, e com absoluto sucesso, a transição de seu uso com crianças abaixo da média para o uso com crianças normais e acima da média (Davis & Rimm, 1989), iniciando uma prática que se perpetua até os dias atuais.


Terman e a controvérsia no uso dos testes


Lewis M. Terman se interessou pelo estudo das habilidades superiores e, em 1916, como professor de psicologia da Universidade de Stanford, publicou uma revisão da escala de Binet de 1911. A escala Stanford-Binet, como se tornou conhecida, se tornou o padrão pelo qual todos os testes de inteligência subseqüentes têm sido julgados (Snyderman & Rothman, 1990).

O status dos testes mentais elevou-se ainda mais quando passou a ser massivamente utilizado na seleção de recrutas do exército americano durante a I Guerra Mundial, o que marcou o início de uma controvérsia pública sobre os resultados dos testes de inteligência. Tais discussões levaram também a um debate que perdura na atualidade, trazendo à baila considerações sobre hereditariedade versus ambiente, a natureza da inteligência e a própria adequação do uso de testes, que motivaram importantes pesquisas nos últimos 60 anos e trouxeram uma nova consciência sobre o uso dos testes.

A primeira pesquisa significativa a respeito das habilidades mentais superiores foi, sem dúvida alguma, o estudo longitudinal empreendido por Terman em 1920, com subsídio governamental (Terman, 1975). Cerca de 1500 crianças de séries elementares da Califórnia (700 do sexo feminino e 800 do sexo masculino) com QI de 140 ou mais, foram indicadas por seus professores como altamente inteligentes, e estudadas em termos de origens raciais, gênero, medidas antropométricas, aspectos físicos e de saúde, progresso escolar, habilidades especializadas, interesses e traços de personalidade (Terman, 1975). Os resultados, publicados em uma série de cinco volumes, mostraram que as crianças da amostra eram apreciavelmente superiores às crianças normais em termos de saúde, ajustamento social, atitudes morais e domínio de disciplinas escolares.

Além disso, ao longo das seis décadas em que este grupo foi acompanhado, observou-se que a incidência de mortalidade, enfermidade, insanidade, delinqüência e alcoolismo se mostrava abaixo da incidência com relação à população em geral. Os resultados também evidenciaram que os indivíduos com alto potencial diferiam entre si de muitas formas, não se constituindo um grupo homogêneo; as diferenças entre o mais e o menos bem sucedido indivíduo no grupo indicavam o status socio-econômico e educação universitária dos pais como fatores de influência; e que o quociente intelectual continuava a aumentar durante a idade madura (Sisk, 1987).

Tais resultados demonstravam, segundo Terman (1975), que o QI poderia ser usado desde idades precoces para predizer a realização adulta superior. Após a morte de Terman, seus associados continuaram com este estudo, tendo já completado pelo menos seis décadas de acompanhamento destes sujeitos (Alencar, 1986).

Várias críticas e observações podem ser feitas com relação a sua amostra e a metodologia usada, como por exemplo: o fato dos alunos estudados serem predominantemente de classe média-alta branca e provenientes de uma mesma cultura; o fato de a nominação de professores ter privilegiado indivíduos com potencial acadêmico superior em detrimento de alunos que se destacam pela criatividade ou liderança, por exemplo; os fatores ambientais, como status sócio-econômico e influências ambientais não foram levadas em consideração para acessar as habilidades dos membros de grupos minoritários; e o fato da inteligência ser considerada como um fenômeno fixo e unifacetado, preditiva do sucesso profissional futuro.

Terman tenha colaborou, de certa forma, para uma visão mais realista e aceitável do indivíduo superdotado, dando, a um campo repleto de misticismo e falsas concepções, bases empíricas e de valor, que por muitas décadas guiaram e deram impulso à área de identificação dos indivíduos portadores de habilidades superiores.

Coube a Leta Hollinghworth, professora da Universidade de Colúmbia, o mérito pelo pioneirismo de considerar a necessidade da escola tomar para si a tarefa de educar e treinar as crianças com potencial superior para o seu próprio bem estar quanto para o da sociedade em geral. Suas pesquisas chamaram a atenção dos educadores para a necessidade de um currículo diferenciado para tais alunos, tanto em profundidade quanto em rápido avanço sobre as disciplinas convencionais, considerando diferentes habilidades (Tannembaum, 1993; Colangelo & Davis, 1991).

Tannembaum (1983) assinala que os trabalhos pioneiros de Terman e Hollingworth direcionaram as pesquisas subseqüentes e consideráveis esforços foram feitos no sentido de examinar outros fatores, de origem não-intelectual, associados à alta realização; de clarificar as condições presentes na família, na escola e na comunidade que estimulam ou inibem o desenvolvimento do talento; e de avaliar as várias influências educacionais no desenvolvimento da criança com alto potencial. A partir destes estudos mostrou-se a necessidade de programas especiais para a criança com altas habilidades, estando a escola em posição privilegiada para ajudar o superdotado a se conscientizar de seu potencial.


A evolução do conceito de inteligência


Sessenta anos de subseqüentes pesquisas na área das habilidades mentais tornou claro que a inteligência é mais fácil de ser medida do que definida (Snyderman & Rothman, 1990). Com o advento dos primeiros testes de inteligência, Charles Spearman, um discípulo de Galton, inventou uma técnica conhecida como análise de fator para investigar a estrutura da inteligência; esta técnica se tornou a principal ferramenta para validação de constructos em psicometria (Snyderman & Rothman, 1990). Spearman concluiu que todas as pessoas possuíam uma inteligência geral, a que ele chamou de fator g. De modo geral, o desempenho de um indivíduo em um teste de habilidade mental refletia sua atividade cognitiva, sendo o fator s (inteligência específica) o responsável pelas habilidades únicas do indivíduo quanto àquela tarefa ou teste.

Thurstone foi o primeiro a assinalar que o mesmo conjunto de resultados em um teste de inteligência poderia produzir um pequeno número de fatores, ao invés de apenas um fator geral, como propunha Spearman. Sua hipótese era de que a inteligência poderia consistir de um número relativamente pequeno de faculdades independentes correspondentes a diferentes domínios cognitivos, cada um delas contribuindo em graus diferentes, dependendo da situação. Tais faculdades seriam: habilidade verbal, raciocínio indutivo ou geral, habilidade numérica, memória mecânica, velocidade perceptual, fluência verbal, habilidade espacial e raciocínio dedutivo, ainda hoje fortemente presentes nas tradicionais medidas de inteligência (Snyderman & Rothman, 1990).

Guilford (1975; 1979) foi um dos primeiros a propor uma visão multidimensional da inteligência. Ele propôs, por volta da metade do século, um modelo para a estrutura do intelecto, composto por 120 fatores intelectuais que descreviam os diferentes tipos de capacidades cognitivas, cada uma delas podendo ser descritas em termos de uma única combinação envolvendo cinco tipos de operações mentais, quatro tipos de conteúdos e seis tipos de produtos. Para ele, a inteligência seria melhor definida como “uma coleção sistemática de habilidades ou funções para o processamento de diferentes tipos de informação em diferentes formas, tanto com respeito ao conteúdo (substância) quanto ao produto (construto mental)” (Guilford, 1979, p. 289). A teoria multifatorial de Guilford abriu espaço para a discussão do papel de outras habilidades cognitivas no intelecto humano, como a criatividade, que não estaria sendo contemplada pelos tradicionais testes de inteligência e que, como todos os outros aspectos da inteligência, poderia ser desenvolvida.

A partir desta época, muitos estudos, teóricos e empíricos, assim como novas teorias começaram a fazer frente à teoria unicista da inteligência. Uma das mais importantes contribuições para o estudo do desenvolvimento humano veio do trabalho de Jean Piaget, epistemólogo suíço que procurou explicar o desenvolvimento intelectual pelas mudanças no desenvolvimento do funcionamento cognitivo. De acordo com Piaget, o processo cognitivo emerge como resultado da reorganização de estruturas psicológicas resultantes da interação dinâmica da criança com seu ambiente. A interação entre as variáveis críticas para o desenvolvimento cognitivo, a saber: a maturação, a experiência, a interação social e a equilibração regulam o curso do desenvolvimento (Wadsworth, 1993). Os testes de Piaget, ao contrário dos testes psicométricos usados até então, tentavam acessar, não o que sabemos (o produto), mas como sabemos ou pensamos (o processo), ou como as pessoas obtêm e usam a informação para resolver problemas e como adquirem o conhecimento (Weinberg, 1989).

Piaget foi também um dos primeiros estudiosos a estabelecer uma teoria interativa da inteligência (Clark, 1992). Segundo ele, todo o desenvolvimento cognitivo depende tanto da contribuição genética quanto da qualidade do ambiente em que se desenvolve. Esta posição tem hoje inúmeros adeptos, pois, como pontua Plomin (1989), as mais recentes pesquisas suportam a noção de que as influências genéticas sobre o comportamento são multifatoriais, envolvendo de igual maneira a transmissão hereditária e o ambiente.

A despeito de consideráveis progressos na área e da adição de inúmeros resultados de pesquisa sobre o desenvolvimento da inteligência, as tecnologias dos testes mentais ainda permanecem virtualmente as mesmos, largamente dominadas pela perspectiva psicométrica (Weinberg, 1989). A Escala Wechsler de Inteligência, por exemplo, adaptada e revista, assim como o teste Stanford-Binet são os dois testes mais amplamente utilizados para o levantamento das necessidades especiais das crianças no âmbito educacional, sendo úteis para medir alguns dos mais importantes aspectos da inteligência (Snyderman & Rothman, 1990). Segundo Weinberg (1989), os testes fazem parte do dia-a-dia da cultura americana, sendo utilizados tanto no âmbito educacional quanto no organizacional, determinando políticas e desempenhando importante papel para a alocação de recursos e oportunidades em toda a sociedade. O QI é ainda o grande responsável na determinação dos rótulos de “retardamento” ou “superdotação”, assim como para definir quem deve receber educação especial e outras oportunidades educacionais. No entanto, a discussão que paira hoje não se refere apenas ao valor dos testes, mas sim a uma cautela no seu uso indiscriminado ou isolado. Questionado o conceito de inteligência, coloca-se em evidência outros métodos que poderiam facilitar a aprendizagem e o desenvolvimento infantil, e outras intervenções educacionais são planejadas para ajudar o aluno a desenvolver de forma mais plena o seu potencial e interagir com mais recursos às mudanças e desafios dos dias atuais.

A necessidade de se buscar atingir altos padrões de desenvolvimento, inclusive para capacitar um país para competir adequadamente com outros, leva à busca da excelência, a qual se referem Maker e Schiever (1984) ao analisarem os relatórios americanos “A Nation of Risk” e “Action for Excellence”, ambos de 1983. As autoras partem do princípio de que a busca da excelência (definida como as competências necessárias para o futuro) é um desafio que as escolas devem enfrentar, e para isto devem preparar os alunos para lidar adequadamente com o futuro, levando-os a aprender e adquirir novas habilidades, e focalizando habilidades de pensamento de “ordem superior”, como análise, síntese e avaliação. Na concepção dessas autoras, o aluno superdotado é aquele que melhor condição tem de entender princípios subjacentes às disciplinas acadêmicas tradicionais e buscar aplicá-los de forma inovadora em áreas diversas, desenvolvendo soluções criativas para os problemas que o futuro oferecerá.

A concepção anterior de inteligência dá, aos poucos, lugar a outras concepções. Novas teorias se formam, e aquela visão unicista dá lugar a visões pluralísticas e dinâmicas. Diferentes definições surgem para a questão da superdotação, que sugerem novas implicações para os programas educacionais especiais. Vamos considerá-las a seguir.


As diferentes definições de superdotação


No Brasil, a definição oficial de superdotação foi proposta por uma equipe de “experts” em educação especial que veio ao nosso país como consultores do Ministério da Educação, sendo a mesma adotada nos Estados Unidos e recomendada por Marland ao Congresso em 1972 (Alencar & Blumen, 1993, p. 850):


“São consideradas crianças portadoras de altas habilidades as que apresentam

notável desempenho e/ou elevada potencialidade em qualquer dos seguintes

aspectos, isolados ou combinados: capacidade intelectual superior; aptidão

acadêmica específica; pensamento criador ou produtivo; capacidade de liderança;

talento especial para artes visuais, artes dramáticas e música; capacidade

psicomotora”.


Segundo Alencar (1986) estes aspectos podem ser assim compreendidos:


- Habilidade intelectual geral: inclui indivíduos que demonstram características tais como: curiosidade intelectual, poder excepcional de observação, habilidade de abstrair mais desenvolvida e atitude de questionamento.


- Talento acadêmico: inclui aqueles que apresentam um desempenho excepcional na escola, que se saem muito bem em testes de conhecimento e que demonstram alta habilidade para as tarefas acadêmicas.


- Habilidades de pensamento criativo: inclui alunos que apresentam idéias originais e divergentes, que demonstram uma habilidade para elaborar e desenvolver suas idéias originais e que são capazes de perceber de muitas formas diferentes um determinado tópico.


- Liderança: inclui os estudantes que emergem como os líderes sociais ou acadêmicos de um grupo, e que se destacam pelo uso do poder, autocontrole e habilidade em desenvolver uma interação produtiva com os demais.


- Artes visuais e cênicas: engloba indivíduos que apresentam habilidades superiores para pintura, escultura, desenho, filmagem, dança, canto, teatro e para tocar instrumentos musicais.


- Habilidades psicomotoras: indivíduos que apresentam proezas atléticas, incluindo também o uso superior de habilidades motoras refinadas e habilidades mecânicas.


Embora a definição de Marland seja útil por chamar a atenção para uma ampla gama de habilidades que devem ser incluídas numa definição de superdotação, ela é criticada por vários autores, como Mönks e Mason (1993), Feldhusen e Jarwan (1993) e Renzulli (1978; 1986), com relação aos seguintes fatores: a) a definição não abarca fatores não-intelectivos, como a motivação, por exemplo; b) as seis categorias incluídas na definição não são paralelas (aptidão acadêmica específica e talento para artes, por exemplo, chamam a atenção para áreas da atividade humana onde os talentos e habilidades se manifestam, enquanto as outras categorias aproximam-se mais de processos que podem se manifestar em áreas de desempenho); c) a criatividade e a liderança não podem ser consideradas à parte de uma determinada área de desempenho; d) a definição tende a ser mal-interpretada e as pessoas continuam a usar a alta inteligência e pontuações em testes de aptidão como requisitos mínimos de entrada nos programas para superdotados. e) falta uma melhor operacionalização das diferentes formas de superdotação.

Vários autores defendem a importância de se definir o que vem a ser “superdotação” ou “talento”, principalmente porque a definição determinará que tipo de estudante será selecionado para os programas especiais, e quais ficarão à margem do atendimento especial (Davis & Rimm, 1989; Gagné, 1985; Hany, 1993). Gagné (1993) é um dos autores que diferencia os constructos “superdotação” e “talento”. Para ele, superdotação corresponde à competência distintamente acima da média em um ou mais domínios da aptidão humana, enquanto o talento corresponde ao desempenho distintamente acima da média em um ou mais domínios da atividade humana. A emergência de um talento resulta da aplicação de uma ou mais aptidões ao domínio de um conhecimento e habilidades em um campo particular, mediado pelo suporte de catalisadores intrapessoais (motivação, autoconfiança), ambientais (família, escola, comunidade), assim como pela aprendizagem sistemática e prática extensiva.

Na opinião de Tannembaum (1991), um indivíduo só poderá ser considerado verdadeiramente superdotado se apresentar o conjunto dos seguintes fatores: 1) um intelecto geral superior (alto fator g ou alto QI); 2) aptidões especiais em algum domínio ou área do conhecimento; 3) um conjunto de traços não intelectivos (como motivação intrínseca, independência, coragem para correr riscos, autoconceito positivo e meta-aprendizagem - ou habilidade para compreender o próprio processo de aprender); 4) um ambiente desafiador e facilitador, que ajude a criança a se desenvolver num clima de afeto, desafio e encorajamento; um ambiente consoante com o próprio Zeitgeist (espírito dos tempos), a fim de que o talento possa ser reconhecido e apreciado; 5) sorte em momentos decisivos da vida, pois muito do sucesso futuro do indivíduo provêm de fatores não preditivos, de se estar no local certo no momento adequado, ou de estar com a mente preparada para reconhecer uma experiência única ou rara. Neste sentido, Tannembaum (1991) acredita que “a sorte interage com a inspiração e a transpiração de forma mutuamente dependente” (p. 42). Para o autor, estes cinco fatores interagem em diferentes formas em cada domínio de talento, não podendo ser considerados em isolamento um do outro.

Feldhusen (1992) focaliza a superdotação em uma perspectiva interacionista. Para este autor, os talentos surgem de uma habilidade geral, sendo o resultado de uma confluência de disposições genéticas, experiências no lar e na escola, estilos de aprendizagem e interesses únicos do estudante. Considera ele que os fatores genéticos são determinantes das forças potenciais do indivíduo, sendo a genética que estabelece os limites do desenvolvimento dos talentos. Assim, os indivíduos que atingem níveis superiores do desenvolvimento do talento já os exibirão em idades precoces. Mas, além disso, as habilidades, aptidões, e inteligências emergem como resultado das experiências, motivações e estilos de aprender de cada um. E, finalmente, os talentos específicos emergem quando as habilidades de “insight” criativo encontram-se aliados a uma base de conhecimento funcional e a habilidades de criatividade metacognitivas.

Renzulli (1986) considera que uma definição de “superdotação” deve seguir os seguintes critérios: a) deve basear-se em resultados de pesquisas sobre as características dos indivíduos com alta habilidade, e não em noções romantizadas e opiniões sem suporte científico; b) deve servir como guia para a seleção e/ou desenvolvimento de instrumentos e procedimentos no processo de identificação; c) deve dar direção e se relacionar de forma lógica aos programas delineados; e d) deve ser capaz de gerar estudos de pesquisas que irão testar a validade da definição.

Há um consenso entre vários pesquisadores (por exemplo, Feldhusen & Jarwan, 1993; Gagné, 1985; Janos & Robinson, 1985; Horowitz & O’Brien, 1985) de que as concepções conflitivas sobre as definições de superdotação, inteligência e talento são responsáveis pelos desacordos existentes na área. As razões para este desacordo se devem principalmente às diferenças de abordagem entre os diversos autores sobre diferentes aspectos como: a) a variedade de habilidades e comportamentos aos quais o termo “superdotação” é aplicado; b) a medida de superdotação utilizada; c) o ponto de corte no teste no qual a criança é considerada superdotada; d) a natureza do grupo de comparação. Além disso, a identificação deste grupo se torna mais difícil à medida que a atenção se desloca da tradicional definição da inteligência para as perspectivas mais amplas que vêem a superdotação como um processo multifacetado.


A superdotação como um processo multifacetado


1. A teoria de Sternberg


Sternberg (1986; 1991) apresenta uma teoria triárquica para o entendimento do comportamento considerado extraordinariamente inteligente. Sua teoria se divide em três sub-teorias interrelacionadas, que se combinam tanto para formar uma ampla base de explicação da inteligência quanto para especificar o tipo de tarefa que é mais apropriada para medi-la.

A primeira delas é a subteoria componencial, que especifica os mecanismos ou componentes mentais responsáveis pelo planejamento, execução e avaliação do comportamento inteligente, atuando através do processamento de informação. A segunda subteoria proposta pelo modelo triárquico - subteoria experiencial - propõe que uma tarefa mede a “inteligência” na medida em que requer a habilidade de lidar com a novidade e a habilidade de automatizar o processamento da informação. Uma pessoa seria mais inteligente, neste ponto de vista, quanto mais rápida e adequadamente puder lidar com as novidades que o ambiente solicitar; quanto mais eficiente for a automatização do seu desempenho, mais recursos adicionais são dirigidos para as situações que demandam mais novidade. Assim, os dois processos podem operar lado a lado, sendo que quanto mais eficiente for o indivíduo em um deles, mais recursos terá para lidar com as demandas do outro.

A terceira subteoria é a subteoria contextual, que tem cinco pressupostos: 1) a inteligência está relacionada à relevância do comportamento para alguém, em sua vida real; a inteligência não pode ser desvinculada do contexto sociocultural, que faz com que um indivíduo possa ser considerado inteligente em uma cultura, mas não em outra, em direta dependência do que é valorizado em cada uma; 2) a inteligência é proposital, relacionada a um objetivo, não importa se consciente ou não; 3) a inteligência é adaptativa, o que consiste na tentativa de um melhor encaixe do indivíduo no seu ambiente que resulte em satisfação; 4) a inteligência envolve dar forma ao ambiente, modificá-lo, de modo que ele se torne mais adequado à si próprio; 5) a inteligência envolve a seleção de ambientes, ou seja, quando a adaptação não é possível e a modificação falha, o indivíduo deve selecionar outro ambiente no qual ele possa, potencialmente, se encaixar melhor e maximizar sua participação.

A teoria triárquica mostra grande relevância para a questão da avaliação da habilidade intelectual superior. Ela assinala que a inteligência não é um constructo único e simples, e mostra quais são as habilidades que devem ser aprendidas, estimuladas ou ensinadas para que a inteligência atinja seus níveis mais altos. A consciência da forma que cada um tem de processar informação é importante, tanto para que o aluno possa concentrar seus próprios esforços no que tem de bom, adequado e mais desenvolvido, quanto para se conscientizar de seus pontos fracos e buscar formas alternativas de compensá-los. Tais estratégias têm a inegável vantagem tanto de impulsionar o ensino quanto de tornar o aluno promotor de seu próprio desenvolvimento.


2. A teoria de Gardner


Howard Gardner e seus colegas do “Harvard Project Zero” desenvolveram uma teoria pluralística da inteligência - Teoria das Inteligências Múltiplas (1985) - que define inteligência como uma habilidade ou conjunto de habilidades que permitem ao indivíduo resolver problemas ou modelar produtos como conseqüência de um ambiente ou cultura particular (1994; 1995; Ramos-Ford & Gardner, 1991). A teoria estabelece, inicialmente, que a competência cognitiva humana pode ser melhor descrita como sendo um conjunto de sete habilidades, talentos ou capacidades mentais, estabelecidas como universais na espécie humana, quais sejam: a inteligência lingüística; a lógico matemática; a espacial; a corpo-cinestésica; a musical; a interpessoal e a intrapessoal. Posteriormente, em 1999, Gardner aumentou-as para oito, a partir da identificação e comprovação da inteligência naturalística ou biológica, acrescentando-a ao rol das inteligências múltiplas.

Cada inteligência é relativamente autônoma uma das outras, tendo sido selecionadas através de exaustivas pesquisas e evidências em diversas fontes: o conhecimento a respeito do desenvolvimento normal e do desenvolvimento em indivíduos talentosos; as informações sobre o colapso das capacidades cognitivas nas condições de dano cerebral; os estudos sobre populações excepcionais, incluindo prodígios, idiotas-sábios (“idiot-savants”) e autistas; dados sobre a evolução do processo de cognição humana ao longo do milênio; a história evolutiva no decorrer da ontogenia; as considerações culturais cruzadas entre testes; e os estudos de treinamento psicológico, particularmente as medidas de transferência e generalização através das tarefas (Gardner, 1995).

Segundo Gardner (1994; 1995; Ramos-Ford & Gardner, 1991), a inteligência lingüística é a que mais amplamente tem sido medida nos tradicionais testes de inteligência. No adulto, a capacidade lingüística pode ser exemplificada na figura do escritor, novelista, poeta ou ensaísta; já na criança, a capacidade neste domínio pode se testada pela sua habilidade em contar ricas e coerentes histórias e relatar de forma acurada suas experiências, e não simplesmente na habilidade de repetir sentenças e definir palavras, como se tem feito tradicionalmente nos testes verbais.

A inteligência lógico-matemática é, juntamente com a inteligência lingüística, a principal base para os testes de QI, sendo considerada o arquétipo da inteligência pura ou faculdade de resolver problemas. Este tipo de inteligência está presente no raciocínio dedutivo e indutivo, na computação e outros campos, e presente em profissões como a do matemático ou físico. No entanto, há idiotas sábios (“idiot-savants”) que realizam grandes façanhas de cálculo, a despeito de suas deficiências em outras áreas. A criança demonstra inteligência lógico matemática na facilidade com que lida com contas, cálculo e notações matemáticas.

A inteligência musical , assim como a lingüística, é, para Gardner, uma competência intelectual separada, que não depende dos objetos físicos do mundo, podendo ser elaborada em graus consideráveis através da exploração e do aproveitamento do canal oral-auditivo. Evidências de várias culturas apóiam a noção de que a música é uma faculdade universal, sendo que o canto dos pássaros sugere o vínculo desta faculdade com outras espécies. O adulto demonstra sua habilidade nesta área através da sensibilidade ao ritmo, textura e timbre; da habilidade de ouvir temas na música; através do desempenho musical e composição.

A inteligência espacial engloba a capacidade de representar e manipular configurações espaciais. O arquiteto, o engenheiro, o mecânico, o pintor, o navegador e o jogador de xadrez são exemplos de pessoas que colocam em prática, no seu trabalho, este tipo de habilidade, embora de diferentes maneiras. Na criança pequena, a capacidade neste domínio pode ser vista com relação à sua facilidade em lidar com quebra-cabeças ou outros jogos de resolução de problemas espaciais.

A inteligência corporal cinestésica refere-se à capacidade do corpo ou parte dele em desempenhar uma tarefa ou modelar um produto. Esta inteligência se manifesta no dançarino, no atleta, no mímico, no cirurgião, por exemplo. A criança inteligente “corpo-cinestesicamente” demonstra sua habilidade movendo-se expressivamente em resposta a diferentes estímulos musicais e verbais, ou demonstrando habilidades atléticas em esportes ou no mesmo em atividades de brinquedo. Para Gardner, constitui uma evidência dos aspectos cognitivos do uso do corpo a capacidade de usá-lo para expressar uma emoção (como na dança), disputar um jogo (como no esporte) ou criar um novo produto.

Da mesma forma que a inteligência corporal-cienstésica, as outras duas inteligências propostas por Gardner - a interpessoal e a intrapessoal - não são usualmente apontadas como tais nos tradicionais testes de inteligência, mas o autor as considera no mesmo nível das demais. Gardner considera que a inteligência interpessoal está baseada numa capacidade do indivíduo em perceber distinções entre os outros, especialmente contrastes com relação a seus estados de ânimo, temperamentos, motivações e intenções. Em formas mais avançadas, essa inteligência permite que o adulto experiente perceba as intenções e desejos de outras pessoas, mesmo que elas os escondam.

Essa capacidade pode aparecer deforma altamente sofisticada em líderes religiosos ou políticos, professores, terapeutas e pais. Crianças com capacidades interpessoais bem desenvolvidas são, em geral, líderes e organizadoras em sala de aula, conscientes de como outras crianças preferem utilizar seu tempo, e sensíveis às necessidades e sentimentos dos outros.

A inteligência intrapessoal refere-se ao entendimento de si próprio, o acesso ao sentimento do valor da própria vida, à gama das próprias emoções, à capacidade de discriminar essas emoções e eventualmente rotulá-las e utilizá-las como uma maneira de entender e orientar o próprio comportamento. A pessoa com boa inteligência interpessoal possui um modelo acurado de si mesma e, como reflete aspectos da vida privada, é mais facilmente transmitida através da música, da linguagem, das artes visuais, etc. Gardner acredita que tanto a faculdade interpessoal quanto a intrapessoal são indicativas de inteligências que se tornam cada vez mais relevantes para o indivíduo e a espécie, estando fundidas no senso de eu do indivíduo.

Segundo Gardner (1995), a independência de cada inteligência significa que um alto nível de capacidade em uma inteligência não requer um nível igualmente elevado em outra inteligência, noção esta que vividamente contrasta com as tradicionais medidas de QI. Da mesma forma, um indivíduo pode não ser especificamente bem-dotado em qualquer uma das inteligências e, no entanto, em virtude de uma peculiar combinação de capacidades, possa vir a ocupar alguma posição na sociedade de forma destacada - talvez mesmo por uma questão de saber aproveitar a chance, como também destaca Tannembaum (1991). Assim, torna-se importante, nesta visão, avaliar a combinação particular de capacidades que pode destinar o indivíduo para determinada posição vocacional ou ocupação.

Um dos aspectos importantes que a Teoria das Múltiplas Inteligências levanta diz respeito a avaliação de determinadas inteligências ou conjunto de inteligências. Segundo a teoria, é importante que a avaliação da capacidade do indivíduo seja feita com os materiais daquela inteligência, utilizados tanto para propor quanto para resolver problemas dentro de um determinado domínio - por exemplo, a avaliação matemática deveria apresentar problemas em ambientes matemáticos; na música, os problemas deveriam estar inseridos num sistema musical, e assim por diante. Uma evidência importante da habilidade ou do talento é dada quando o indivíduo pode escolher, em meio a materiais variados, capazes de estimular várias inteligências, os que mais chamam a sua atenção e explorar de forma mais aprofundada.

Posteriormente pode-se propor outras situações de avaliação que possam levar ao entendimento mais completo do tipo de inteligência apresentado por cada criança em situação de escolha. No âmbito escolar, a avaliação pode se estender por todo um ano letivo, pois é através de jogos especialmente fabricados para acessar cada tipo de inteligência e de toda uma estimulação por parte de professores treinados, que cada inteligência vai gradualmente emergindo e se evidenciando no comportamento infantil.

De forma complementar, também nossos próprios estudos (Virgolim & Alencar, 1993) chamam a atenção para a importância de um ambiente estimulador, onde o aluno tem chance de elaborar e testar hipóteses, discordar, propor soluções alternativas, brincar com idéias, manipular materiais diversos e divulgar suas próprias idéias e produções. Este tipo de ambiente, além de ser altamente estimulador da capacidade criadora e motivacional do aluno, permite a ele trabalhar dentro de seu próprio estilo cognitivo em cada domínio, e permite ao professor conhecer melhor as capacidades e dificuldades de cada um em sala de aula. Informações valiosas podem ser assim passadas para professores, pais e para a própria criança, como guia para as atividades que podem ser desenvolvidas em diferentes graus pelo aluno.


3. A teoria de Renzulli


Assim como Gardner e Sternberg, Renzulli acredita que a inteligência tem múltiplas facetas, e a escola se encontra em posição chave para desenvolver e propiciar ao aluno as condições ideais de desenvolver suas habilidades, aptidões e talentos em direção à sua auto-realização como ser humano.

Segundo Renzulli (1986), o aluno pode se encaixar em duas amplas categorias de habilidades superiores: a superdotação escolar e a superdotação criativa-produtiva. O primeiro tipo pode também ser chamada de “habilidade do teste ou da aprendizagem da lição”, pois é o tipo mais facilmente identificado pelos testes de QI para a entrada nos programas especiais. Como as habilidades medidas nos testes de QI são as mesmas exigidas nas situações de aprendizagem escolar, o aluno com alto QI também tira boas notas na escola. A ênfase neste tipo de habilidade recai sobre os processos de aprendizagem dedutiva, treinamento estruturado nos processos de pensamento, e aquisição, estoque e recuperação da informação. Já a habilidade criativa-produtiva implica no desenvolvimento de materiais e produtos originais; aqui, a ênfase é colocada no uso e aplicação da informação - conteúdo – e processos de pensamento de forma integrada, indutiva, e orientada para os problemas reais. O aluno, nesta abordagem, é visto como um “aprendiz em primeira-mão”, no sentido de que ele trabalha nos problemas que têm relevância para ele e são considerados desafiadores (Renzulli, 1986).

No entanto, o que se percebe é que os alunos tradicionalmente selecionados para os programas se encaixam no primeiro grupo, enquanto grande parte daqueles que permanecem abaixo do ponto de corte dos resultados nos testes (geralmente os do segundo grupo) permanecem do lado de fora, sendo negado a eles a oportunidade de ter acesso a serviços especiais. Renzulli (1986) considera ainda que o propósito da educação dos portadores de altas habilidades é “fornecer aos jovens as máximas oportunidades de auto-realização através do desenvolvimento e expressão de uma ou mais áreas de desempenho onde o potencial superior pode estar presente” (p. 59), e de formar um contingente de pessoas capacitadas para ajudar a resolver os problemas da civilização contemporânea, tornando-se produtores de conhecimento e arte, mais do que meros consumidores da informação existente. Renzulli considera que a habilidade superior é uma condição que pode ser desenvolvida em algumas pessoas se uma apropriada interação ocorrer entre ela, seu ambiente e uma especial área do conhecimento humano. Desta forma, Renzulli acredita que o termo “superdotado” é inapropriado e contraprodutivo para fins de identificação, e propõe que a ênfase deva ser retirada do ser/não ser portador de altas habilidades para “desenvolver comportamentos” de superdotação naqueles jovens que têm o maior potencial para se beneficiar de serviços de educação especial. Sua proposta é de dar ao conceito o dinamismo que ele se reveste, por variar tanto dentro das pessoas quanto em situações de aprendizagem/desempenho.

O que produz a habilidade superior? O modelo proposto por Renzulli pretende responder a esta questão, considerando superdotado o aluno que apresentam um conjunto bem-definido de três aglomerados de traços: habilidade acima da média (não necessariamente superior), envolvimento com a tarefa (ou motivação) e criatividade. Nenhum destes traços isolados são garantia de que o indivíduo apresentará comportamentos superdotados, mas sim a complexa interação que possa haver entre eles (Renzulli, 1986).

No modelo de Renzulli, o termo “habilidade acima da média” se refere tanto a habilidades gerais quanto a específicas, sendo “habilidade geral “ definida como “a capacidade de processar informação, integrar experiências que resultam em respostas apropriadas e adaptativas a novas situações, assim como a capacidade de se engajar em pensamento abstrato”; habilidade específica consiste “na capacidade de adquirir conhecimento e habilidades, ou a habilidade de desempenho em uma ou mais atividades de um tipo especializado e dentro de uma variação restrita” (Renzulli, 1986, p. 66).

Envolvimento com a tarefa se refere à energia que o indivíduo investe em um problema ou tarefa ou numa área específica de desempenho, e que pode ser traduzido em termos como perseverança, paciência, trabalho árduo, prática dedicada, autoconfiança e crença na própria habilidade de desenvolver um trabalho importante.

A criatividade tem sido apontada como um dos traços mais presentes nos indivíduos considerados proeminentes; no entanto, devido à dificuldade de acessá-la através de testes confiáveis de criatividade, métodos alternativos têm sido propostos, como a análise dos produtos criativos e auto-relatos dos estudantes. No entanto, torna-se um desafio determinar os fatores que levam o indivíduo a usar seus recursos intelectuais, motivacionais e criativos de forma a manifestar-se em um nível superior de produtividade.

Renzulli (1992) acredita que, às portas do novo milênio, é necessário explorar novos paradigmas de pesquisa que focalizem sua atenção no estudo de indivíduos jovens em situações de aprendizagem práticas e realistas, onde a produtividade criativa seja valorizada e premiada. Considera também essencial considerar os programas especiais como locais que constróem a superdotação, e não meramente a identificam e alimentam. Sua opinião é a de que, se continuarmos a conduzir programas baseados em alta medida na tradicional medida de QI, estaremos sufocando o desenvolvimento de um manancial de novos e inovadores programas, onde a pesquisa pioneira teria seu lugar.


III. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES


Mais de um século se passou desde a publicação de “Hereditary Genius”, de Galton e quase um século desde que o primeiro teste de QI foi apresentado por Binet. Apesar da grande influência que os testes exerceram na maneira ocidental de se conceber a inteligência, nos deparamos hoje com um grande avanço nas pesquisas e nos paradigmas que estão subjacentes à nossa concepção de superdotação. De acordo com Sternberg (1986) e Heller (1993), precisamos hoje pensar não somente em termos dos múltiplos componentes da superdotação, como também nos múltiplos tipos de superdotação. Torna-se, assim, mais produtivo focalizar nossa atenção nos talentos ou aptidões especiais do que procurar por uma superdotação geral, mesmo porque o que se procura com a identificação é uma melhor adequação dessa população com os diversos programas e serviços educacionais especialmente talhados para diferentes tipos de superdotação (Feldhusen & Jarwan, 1993; Hany, 1993; Renzulli & Reis, 1991). Além disso, a identificação deve ser vista como um processo contínuo, um conjunto de habilidades que emergem e se desenvolvem à medida em que a criança amadurece; e deve preferencialmente apontar os pontos fortes, aptidões e talentos de cada criança, em detrimento de suas fraquezas e incapacidades, como tradicionalmente se tem feito.

Numerosas pesquisas têm demonstrado que a medida tradicional de QI não é um bom preditor do sucesso futuro de um indivíduo, apesar de se relacionar significativamente com a realização escolar (Tannembaum, 1991; Weinberg, 1989). Trost (1993), por exemplo, considera que não há um preditor único da superdotação, sendo que o desempenho superior é o produto de uma interação intra-individual altamente complexa de uma variedade de traços (habilidades cognitivas e não-cognitivas, atributos motivacionais e emocionais, variáveis de personalidade, autoconceito elevado), assim como de uma interação entre estes traços individuais e fatores ambientais (influências da família, pares, escola, universidade, experiências extracurriculares, a mídia, etc.). Há que se realizar estudos longitudinais mais amplos, da envergadura do que se propôs Terman (1975) para que outros preditores da realização superior venham a ser conhecidos.

Concordamos também com Feldhusen (1992) que concebe a identificação da superdotação como um processo contínuo, no qual os professores, os pais e a próprio aluno entendem cada vez mais o seu potencial superior e estão prontos a ajudá-la a encontrar o foco de seu desenvolvimento futuro, através de programas ecléticos, que usam uma variedade de recursos para encontrar, desenvolver e alimentar os talentos do jovem. Buscamos programas que possam se adequar às necessidades individuais de cada um, de forma a torná-los, como sugere Betts (1991) aprendizes independentes e auto-direcionados, com habilidades e atitudes positivas nos domínios cognitivo, emocional e social. O aluno deve aprender a explorar suas habilidades, reforçando seus pontos fortes e aperfeiçoando os pontos fracos; aprender a coordenar e equilibrar os diferentes aspectos de suas habilidades e, conforme pontua Sternberg (1991), reconhecer seus metacomponentes e trabalhar no sentido de desenvolvê-los de forma bem integrada.

Além disso, torna-se necessário - e neste ponto concordamos plenamente com Gardner (1995), que as práticas educacionais atuais sofram mudanças importantes, às portas como estamos do terceiro milênio. É essencial que a idéia das inteligências múltiplas façam parte da formação de professores. Segundo Gardner, “se a sensibilidade às diferentes inteligências ou estilos de aprendizagem se tornar parte dos modelos mentais construídos pelos novos professores, a próxima geração de instrutores provavelmente será muito mais capaz de atingir cada aluno de maneira mais direta e efetiva” (1995, p. 213).

As recomendações de Renzulli (1992) quanto ao importante papel desempenhado por um professor competente, motivado, apaixonado pelo que ensina, sensível às diferenças individuais cognitivas de seus alunos, não podem ser desprezadas se quisermos obter um ensino de alta qualidade. Em relação ao Brasil, em particular, é necessário que o país como um todo abra suas portas às modernas evidências de pesquisa sobre o indivíduo portador de altas habilidades, e que considere seu potencial também como promotor do desenvolvimento tecnológico, cultural e educacional da nossa nação. Não podemos desperdiçar nossas inteligências; há por toda parte um rico manancial de jovens esperando por melhores oportunidades e desafios às suas capacidades.

Precisamos de uma política educacional mais ampla, mais inteligente, voltada para as necessidades educacionais de todos os indivíduos, dando-lhes oportunidades concretas de se desenvolver adequadamente, engajando-os em programas especiais bem planejados. Na área acadêmica, há tudo por se fazer. As universidades que, com raríssimas exceções, nem mesmo contam com disciplinas nessa área, precisam abrir espaço para o estudo da inteligência e das habilidades superiores. Precisa-se de pesquisadores que iniciem o trabalho que há décadas se desenvolve nos Estados Unidos e Europa. Precisamos desenvolver e validar testes na área, buscar novos procedimentos, desenvolver pesquisas com amostras brasileiras. Enfim, precisamos dar atenção a uma área que ainda se mostra tabu em nossa cultura. Vencer medos e preconceitos é o desafio que nos espera.


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