segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

INDIVÍDUO, SOCIEDADE E GENIALIDADE: NOBERT ELIAS E O CASO DE MOZART


Blog “Genialidade e Superdotação”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.



A história é sempre história de uma sociedade, mas, sem a menor dúvida, de uma sociedade de indivíduos”.

(Norbert Elias)



RESUMO


Norbert Elias, sociólogo alemão, aborda a relação indivíduo/sociedade de modo a esquivar-se de uma paralisante dicotomia entre os termos, seus esforços vão no sentido de estabelecer uma tensa e dinâmica interação entre eles. Ao examinar tal relação, questiona o papel do indivíduo e suas possibilidades de influir na mudança social; o caso do gênio – situação-limite da provável influência do indivíduo – é ilustrado por Mozart e sua situação social e estética no séc. XVIII. 


A questão da relação entre indivíduo e sociedade foi sempre algo muito presente e controverso na sociologia, um grande número de autores enfrentou o problema e, não fosse o exagero da assertiva, diríamos que há tantas soluções quanto são os autores que se depararam com o desafio. Norbert Elias, sem medo de repisar um terreno já tão freqüentado, voltou ao tema atacando a questão de forma inovadora, sem recorrer às soluções já aventadas, nem aos chavões que pretensamente desfaziam as dificuldades. Além disso, ignorou solenemente o tabu que ditava o severo distanciamento entre sociologia e psicologia, recompondo o objeto conforme uma configuração própria e não ao sabor dos ditames das disciplinas e seus ‘foros de competência’.

A construção teórica de Elias sobre a questão indivíduo/sociedade explora as relações dinâmicas entre os termos – e suas caracterizações – em distintas sociedades e tempos históricos. Ademais, propõe também uma dificuldade superior, objeto de outro trabalho, mas que está profundamente imbricado com a análise referida: Após lidar com a espinhosa questão da relação indivíduo/sociedade, e estabelecer as configurações e modos de articulação possíveis entre os termos, como lidar com a incômoda figura do indivíduo que – possuidor de características especiais, talento e peculiaridade – ameaça transpor as barreiras que limitam a ação do homem singular numa sociedade? A saber, como lidar com a perturbadora figura do gênio que, em sua condição individual, extrapola os limites do homem comum e avança vorazmente sobre as rédeas da história, tentando influenciá-la decisivamente?

Ao abordar o caso Mozart, Norbert Elias leva o problema às últimas conseqüências e, estudando um indivíduo, espreita os limites e as formas de relação possíveis entre um homem e a sociedade à qual pertence, entre a sua condição e as suas possibilidades, entre a sua vontade e os parâmetros sociais.


NORBERT ELIAS: INDIVÍDUO E SOCIEDADE


As considerações de Norbert Elias sobre essa controversa questão possibilitam criticar as formas como geralmente é equacionada e aponta para a influência negativa que as ciências naturais (ainda) exercem sobre as ciências sociais: freqüentemente, o problema é colocado como o cotejar entre substâncias distintas – Indivíduo vs. Sociedade –, essências puras e indissociáveis, entes em oposição. Desse modo, afirma-se equivocadamente o primado de um ou de outro, tomando-se, por um lado, a sociedade como uma generalidade intransponível e impossível de ser decomposta e, por outro lado, o indivíduo como algo atomizado, não suscetível de ser universalmente considerado. Daí a tensão estéril entre os termos, o duelo ad nauseum entre substâncias irredutíveis e não intercambiáveis.

Em vez de tomar tais termos como substâncias isoladas, Elias considera as suas relações e funções, o que implica tomar os termos de modo relacional e dinâmico, fundindo-se e refundindo-se, integrando-se e distinguindo-se, em contínua interação. Tal forma de abordagem, obviamente, supõe desfazer o nó que impede o fluxo do pensamento do âmbito da sociologia para o da psicologia e vice-versa. O próprio título do principal trabalho do autor sobre o tema já dá suficiente noção de sua caracterização do problema: em “A sociedade dos indivíduos” (1994), Elias deixa claro que a sociedade é formada por indivíduos e estes são constituintes da sociedade – ambos inexoravelmente imbricados, não sendo possível considerar os termos separadamente. Afirma ele que não há sociedade sem indivíduos e, analogamente, não há indivíduos sem sociedade. Portanto, seria um “absurdo” tomar os termos de outro modo que não aquele da cumplicidade.

Os indivíduos, conforme seus habitus, são integrantes/constituintes da sociedade, modelando-a e modelando-se ao relacionarem-se uns com os outros, pois esse ‘atrito’, essa relação tensa, dinâmica e mútua entre os indivíduos configura o que chama de fenômeno reticular.  Tal processo de individuação não é o mesmo em qualquer sociedade e em qualquer tempo histórico, pois cada sociedade e cada momento histórico têm modos e ritmos próprios que, por sua vez, determinam formas também particulares de configuração e de inter-relação entre indivíduo e sociedade. Não há, assim, uma fórmula, uma maneira genérica de tratar a questão, não há conceitos férreos que possam nortear uma ‘teoria geral’ da relação indivíduo/sociedade.

Na sociedade humana, as trajetórias sociais são como planos emergindo em que há sensos de propósito que se entrecruzam, mas sem finalidade (ELIAS, 1994: 59). Portanto, os empreendimentos simples, volitivos e individuais não ocorrem num vazio de determinações sociais, nem são meras funções de alguma espécie de necessidade histórica coletiva e extrínseca. Nesse sentido, ocorre que a sociedade produz o indivíduo e que o indivíduo molda-se em contínua ação com outros indivíduos, o que, assim sendo, influencia – em última instância – a própria forma dinâmica da sociedade. Enfim, a relação identidade-eu/identidade-nós não comporta uma oposição excludente, dá-se em termos de mudanças na balança nós-eu, estabelecendo um equilíbrio tenso, diferenciado conforme a disposição dos termos em cada sociedade, em cada período histórico.


MOZART: (O)CASO DE UM GÊNIO


Na teia social de sua época, os Mozart (pai e filho) eram tão somente servidores de nobres cortesãos, faziam parte do universo dos muitos domésticos que buscavam a proteção (ou reconhecimento) de uma casa nobre. No entanto, o indivíduo Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) não se integrou perfeitamente às expectativas de prática social de sua época, buscando uma margem de autonomia artística que, como notara Elias, somente se realizou historicamente na maturidade de Beethoven (1770-1827). Portanto, o reconhecimento artístico de Mozart como gênio foi tardio. Porém, para se evitar anacronismos, deve-se perguntar: Como se colocava a questão do gênio na época de Mozart?

Na concepção iluminista, a questão do gênio – e, conseqüentemente, a do talento – era posta em termos de um dom natural, um legado ocasional da natureza. Até início do século XIX, não havia ainda a idéia do gênio como indivíduo, isto é, não havia a referência ao indivíduo como “gênio”, ao indivíduo como o possuidor de um dom especial. Na verdade, era quase como se o dom possuísse o indivíduo, a saber, havia um “gênio” que caprichosamente tomava o indivíduo, que se encarnava nele, instrumentalizava-o a serviço da natureza, da razão, da arte e – é bom lembrar – de um patrono. Nesse sentido, no limite, o que havia eram indivíduos de “gênio”, indivíduos que serviam ao “gênio”. Nas palavras de Kant (1724-1804), contemporâneo de Mozart:

Gênio é o talento (dom natural) que dá à arte a regra. Já o talento, como faculdade produtiva inata do artista, pertence, ele mesmo, à natureza. Poderíamos também exprimir-nos assim: gênio é a disposição natural inata (ingenium), pela qual a natureza dá à arte a regra. [...] Gênio é a originalidade de modelar do dom natural de um sujeito no uso livre de suas faculdades de conhecimento [...]. O gênio é um favorito da natureza, tal que só se pode considerá-lo como um fenômeno raro; o seu exemplo, para outras boas cabeças, produz uma escola, isto é, uma instrução metódica segundo regras, na medida em que se tenha podido extraí-las daqueles produtos do espírito e de sua peculiaridade; e, para estas, a bela-arte é, nessa medida, imitação, à qual a natureza, através do gênio, deu a regra.” (KANT, 1974: 340-349, itálicos do autor).

No entanto, como lembra Elias, as regras da arte seguiam o gosto cortesão. Era inscrevendo-se nesse padrão de gosto e realizando-o com maestria que Mozart construía a sua variação de arte, cuja finalidade social modelar era servir como entretenimento para nobres cortesãos. Portanto, se para alguns contemporâneos de Mozart, como Kant, o gênio era como um legado que materializava o ‘espírito’ do ingenium natural e, de certo modo, fazia progredir a arte por meio de sua ação, não se deve ignorar que tal gênio, uma vez encarnado, adquiria funcionalidade, realizava um padrão de gosto inscrito numa relação social de poder.

A concepção posterior de gênio como indivíduo extraordinário – i.e., a noção de sujeito de raro talento, com consciência singular do processo artístico – é uma idéia romântica. Somente no romantismo o gênio tornou-se o indivíduo espetacular que, no livre e deliberado exercício de seu talento pessoal, rompe com os limites do seu tempo, quebra os padrões e extrapola a ordem, fazendo avançar as formas de expressão e criando novas condições a partir das quais os outros recomeçam, abrindo caminho para que outro indivíduo genial rompa com o estabelecido. Assim, quando chegamos à geração de Hegel (1770-1831), já podemos observar este deslocamento de sentido:

“Gênio é aquele que tem o poder geral da criação artística bem como a energia necessária para exercer tal poder com o máximo de eficácia. Tal poder e tal energia são, porém, essencialmente subjetivos, pois a produção espiritual só pode existir num sujeito consciente do que quer, dos fins que se propõe, da obra que pretende realizar”.(HEGEL, 1985: 303, itálicos do autor).

O gênio – da forma, tal como é definido por Hegel – tem seu exemplar, mormente, em Beethoven, o artista romântico por excelência, aquele que – ao contrário de Mozart – encontrará um terreno fértil para contrariar o status quo, já que presenciará a decadência do Antigo Regime e a ascensão de um novo ambiente cultural, não mais regido pela rigidez do gosto da corte, mas sim direcionado a um público anônimo. Mozart, segundo Elias (1995: 45-52), viveu justamente a tensa transição da arte de artesão para a arte de artista. Embora eu considere que esta distinção feita por ele seja pertinente, já que se refere a configurações sociais historicamente distintas, penso que Elias subestima consideravelmente o poder do público e do mercado de ditar os padrões de gostos para a arte de artista. Otto Maria Carpeaux trata dessa transição da arte de artesão para a arte de artista de forma bastante semelhante a Elias, quando afirma que:

“A igreja, a corte monárquica e o palácio do aristocrata perdem a função de mecenas que encomenda obras ao artista. No século XIX, o compositor enfrenta o público, isto é, uma massa de desconhecidos, pessoas que não encomendaram nada: esperam, apenas, algo de novo. Ao anonimato dos ouvintes corresponde o subjetivismo romântico do compositor. Esse novo público é, evidentemente, a burguesia”.(CARPEAUX, 1995: 154).

Segundo Elias, mesmo vivendo uma situação condicionada pela arte de artesão, Mozart pretendeu se estabelecer como artista autônomo depois que fracassou em ser aceito na corte de Viena. Assim, deixou-se guiar por uma ânsia de expressão original e criadora, fustigando os limites do padrão de gosto da arte cortesã justamente porque sabia realizá-lo de forma sublime – mérito da educação disciplinada, neste padrão, em que seu pai tanto se esmerara a dar-lhe. Deste modo, a sua genialidade, como “fato social”, termina por encerrar o seu “destino social”, já que lhe confere uma condição de “desvio da norma”, a despeito de sua subordinação social aos ditames da corte. Mozart insurgiu-se contra esse estado de coisas e vislumbrava a possibilidade de expandir os estreitos padrões da arte a partir de suas próprias exigências estéticas pessoais.

Todavia, a sociedade de sua época vedava a Mozart o exercício da condição de artista autônomo: ele – um “burguês outsider na sociedade da corte”, segundo Elias – esbarrava nas estreitas condições de produção da arte (e imperativos do gosto[1][1]) por possuir uma convicção da independência do artista no processo de criação. Assim, rebelava-se contra o estado de coisas e angariava problemas em demasia para a sua vida doméstica. Considerando isso, caberia perguntar: Se as condições sociais cerceavam o horizonte de atuação transformadora de Mozart enquanto indivíduo e gênio, poderia ele expandir os estreitos limites de sua atuação e mudar significativamente suas possibilidades de realização dentro de uma estrutura de relações sociais? De modo simplificado, poderia ele mudar o seu destino social e, em última instância, os aspectos da sociedade em que vivia?

A possibilidade (ou não) de mudança social e mesmo do ‘curso’ da história por indivíduos já foi aventada e intensamente discutida. O filósofo escocês Thomas Carlyle (1795-1881), autor de “Os Heróis”, chegou mesmo a esboçar uma filosofia da história na qual os heróis – indivíduos raros e superiormente dotados – fariam eles próprios, com suas proezas, avançar a história. Na sociologia, se Marx (1986) deixou pouquíssimo espaço para a atuação do indivíduo na história – e talvez a sua própria existência, determinante para alguns acontecimentos, contrarie-o na sua teoria – e privilegiou as classes sociais como sujeitos, Durkheim (1978), de outra forma, praticamente vetou a ação socialmente significativa dos indivíduos, vendo nestes uma mera função de uma sociedade (“ente externo”) generalizadora.

Max Weber (1982), adepto de certo individualismo metodológico, reconheceu a possibilidade de o indivíduo influenciar decisivamente os rumos sociais – ainda sim, tais afirmações não constam de sua teoria da ação e sim das formas de dominação. Em sua teoria, somente na análise da dominação carismática surge um indivíduo que, particularmente encarnando determinados atributos socialmente reconhecidos, isto é, dotado de carisma, poderia – em circunstâncias peculiares – modificar a forma de ordenação de uma sociedade, subvertendo a ordem e, modernamente, a avassaladora rotinização do domínio da racionalização.

E na visão de Norbert Elias? Como era colocada a questão do indivíduo extraordinário, o seu horizonte de atuação e os seus limites institucionais e históricos? Para ele:

“Nenhuma pessoa isolada, por maior que seja a sua estatura, poderosa sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as leis autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para a qual eles são dirigidos. Nenhuma personalidade, por forte que seja, pode [...] deter mais do que temporariamente as tendências centrífugas [...]. Ela não pode transformar sua sociedade de um só golpe”.(ELIAS, 1994: 48).

Ainda que...

“[...] a margem de decisão individual emirja dentro da rede social, não existe uma fórmula geral indicando a grandeza exata dessa margem individual em todas as fases da história e em todos os tipos de sociedade. Justamente o que caracteriza o lugar do indivíduo em sua sociedade é que a natureza e a extensão da margem de decisão que lhe é acessível dependem da estrutura e da constelação histórica da sociedade em que ele vive e age. De nenhum tipo de sociedade essa margem estará completamente ausente”.(ELIAS, 1994: 49).


Entretanto,


“[...] a forma e a extensão da margem individual de decisão podem variar consideravelmente, conforme a adequação e a estatura pessoais do ocupante da função. Aqui, a margem de decisão é não apenas maior, como também mais elástica; nunca, porém, é ilimitada”.(ELIAS, 1994: 50).

Assim, nem a sociedade nem os indivíduos determinam unilateralmente a história, não há uma regra geral ou modelo interpretativo único que fixe cabalmente o papel e as possibilidades de mudança por parte dos sujeitos sociais. Mesmo o indivíduo, em sua singularidade, pode – em certa margem – promover mudanças sociais, mesmo “o caráter individual e a decisão pessoal podem exercer considerável influência nos acontecimentos históricos” (ELIAS, 1994: 51). Voltemos, então, ao caso Mozart: Por que o jovem gênio, com todo o seu virtuosismo, não pôde exercer sua arte da forma almejada, como o faria mais tarde Beethoven com imensa autonomia?

Uma passagem da biografia de Beethoven – relatada por J. e B. Massin (apud HENRY, 2001: 148, in GARRIGOU e LACROIX, 2001) – ilustra com precisão a nova conduta do gênio romântico como artista independente, esteticamente ‘livre’, que já não reverenciava o patronato cultural e a rígida hierarquia social. Ao ser interpelado pelo Príncipe Lichnóvski a respeito de sua arte, Beethoven respondeu: “Príncipe, o que sois viestes a ser pelo acaso do nascimento. O que sou, sou por mim mesmo. Príncipes existem e ainda existirão aos milhares, Beethoven, só existe um”. Ele já tinha arraigada a consciência de sua singular condição, via-se, como é visto até hoje, como ícone da música; por outro lado, quem se lembra ou mesmo conhece hoje o Príncipe Lichnóvski?

No entanto, no ocaso Mozart, fora vedada socialmente a alternativa de subverter o establisment social-estético devido à inexistência de um mercado e público anônimo de consumidores, o que concederia ao artista, segundo Elias, a possibilidade de se expressar esteticamente de modo mais ‘livre’, sem constrangimentos imediatos à sua obra:

“O fato de Mozart depender materialmente da aristocracia da corte, quando ele já tinha se constituído como artista autônomo que primariamente buscava seguir o fluxo de sua própria imaginação e os ditames de sua própria consciência artística, foi a principal razão de sua tragédia.” (ELIAS, 1994: 136).

Tem-se então que, tragicamente, Mozart fracassou na vida e realizou-se na história. Derrotado em vida pelas condições limítrofes da sociedade em que viveu, acabou triunfando postumamente em sua luta pela autonomia da arte. Seria isso uma vitória momentânea da sociedade ou – na derrota – uma vitória histórica do indivíduo? Tal questão Norbert Elias não se colocou.




[1][1]A caracterização do gosto e do estilo como manifestações estética e socialmente estruturadas a partir de condições de classe são preocupações de Bourdieu (1983; 2001). Já uma visão histórica do desenvolvimento da música como expressão social e estética está em Schurmann (1989).





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