segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O MEDO E A GENIALIDADE DE UM PENSADOR DA CONTEMPORANEIDADE


Blog “Genialidade e Superdotação”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.



Autoria:

Bruno Pompeu. mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. É, também, publi-citário formado pela ECA-USP e membro do GESC – Grupo de Estudos em Semiótica, Comunicação, Cultura e Consumo.


INTRODUÇÃO


O mundo urbano contemporâneo está nas trevas, de cabeça para baixo, sob uma tempestade sem fim. Ao menos é isso o que sugere a capa do livro Medo Líquido, escrito pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman e traduzido para o português por Carlos Alberto Medeiros, lançado no Brasil em 2008. Sem embargo de a escrita caminhar para um final conclusivo e esperançoso, que aponta possíveis soluções para os medos atuais, os seis capítulos do livro percorrem trechos real-mente sombrios e assustadores, propondo a discussão – sempre por meio de um olhar surpreendente e inovador – acerca de algumas situações cotidianas que, de tão ameaçadoras, causam... medo.

Um dos méritos de Bauman é ser objetivo e claro na hora de compor suas obras. Não apenas seus capítulos são bem definidos tematicamente, mas também ficam evidentes os intuitos do autor em cada segmento da obra. Essa objetividade faz com que seja fácil depreender da leitura quais são as quatro principais origens dos medos contemporâneos: a morte, o mal, o desconhecido e o global. E Bauman aborda calmamente cada um desses temas, transformando-os em motes para capítulos bastante analíticos e instigantes.

Para falar da morte, o autor se vale dos reality shows, que tanto sucesso fazem nos dias correntes. Longe de serem um rápido fenômeno televisivo do nosso século (como se chegou a pensar), os programas de televisão que exploram a “realidade” têm permanecido nas grades das emissoras. Mais do que isso: novos formatos são criados (cada vez mais intrusivos e ousados), modelos antigos são reformulados e trazidos novamente ao ar (para também contemplar os saudosistas do recente) e programas de outros tipos acabam recorrendo ao formato dos “realities” para garantir o sucesso de público (já que a criatividade anda às poucas). E Bauman é sagaz ao perceber que o Big Brother– símbolo do entretenimento midiático contemporâneo – não é um jogo que procura manter pessoas diferentes dentro de uma casa – o que poderia ser um exercício de tolerância e respeito ao outro. Pelo contrário: é um jogo cujo momento central é a eliminação de uma pessoa daquela casa.

O que dá audiência, o que faz sucesso e o que movimenta o jogo são os momentos em que algum dos participantes é alijado do convívio com o grupo dominante. Assim, segundo Bauman, os reality showsse transformam nos contos morais dos nossos dias, ensinando as pessoas a lidarem com a morte (eliminação) e estabelecendo as novas regras de comportamento social.

Seguindo esse mesmo princípio, o autor cita o conceito da “morte de terceiro grau”, que seria não exatamente a morte, mas sim o afasta-mento, a ruptura ou a distância, por motivos circunstanciais. Ou seja: situações que acabam por banalizar a morte, criando a falsa noção de que se pode aprender a morrer. Porque o medo que se sente com relação à morte não é necessariamente o medo de morrer. Bauman diz que o pavor que nos acomete vem muito mais da certeza da nossa morte, sem que se possa saber quando e como isso sucederá.

Ao relacionar o medo com o mal, o livro ganha traços de abstração, tornando mais difícil a tarefa de se arrolar exemplos cotidianos que pudessem concretizar os assuntos abordados teoricamente. Mas o autor é didático o suficiente e consegue trazer tais assuntos ao nível do palatável. Um exemplo disso é quando ele comenta que data do século XVIII a separação que a filosofia moderna estabeleceu entre os males naturais (aleatórios e imprevisíveis) e os males causados pelo homem (intencionais e premeditados). Dando destaque muito mais a estes últimos, Bauman chega a dizer que se temem os atos de maldade humana porque se nota neles uma alta carga de racionalidade. Em outras palavras: o que assusta em uma catástrofe causada pelo homem não é tanto a catástrofe em si, mas muito mais a intenção e o planeja-mento que forjaram o ato.

A invencibilidade do mal e a impossibilidade de identificá-lo gera uma grave crise de confiança. E, bem ao seu estilo provocador e controvertido, apontando a seta das acusações justamente para o leitor, Bauman chega a dizer que a confiança está em dificuldades no momento em que tomamos conhecimento de que o mal pode estar oculto em qualquer lugar; que ele não se destaca na multidão, não porta marcas distintivas nem carteira de identidade; e que todos podem estar atualmente a seu serviço, ser seus reservistas em licença temporária ou seus potenciais recrutas. (p. 93)

Daí que, hoje, e cada vez mais, as relações humanas sejam motivo de angústias e desconfianças. A crescente necessidade que se tem por vínculos sólidos, baseados na fidelidade e na lealdade, colabora para aumentar a ansiedade. Porque já não se pode mais confiar em ninguém e está borrada a linha que separa os “amigos para toda a vida” dos “inimigos eternos”.

O terceiro capítulo de Medo líquido é o que mais dá destaque aos paradoxos do homem nos tempos líquido-modernos, já propondo desde o início que a atual situação de iminente extinção da espécie – devida aos artefatos bélicos criados e colecionados por vários países é fundamental para que o verdadeiro fim seja postergado. Ou seja: a ameaça de mútuo (e na verdade auto) aniquilamento é de fato indispensável para que se adie a extinção (Bauman, 2008, p. 97).Mais adiante, ao comentar novamente o embate entre o homem e a natureza, o sociólogo polonês mostra seu lado acadêmico e cita um outro autor, o professor Martin Espada. Que por sua vez soa convincente ao dizer que, embora se costume pensar nos desastres naturais como algo aleatório e eqüitativamente distribuído pelo mundo, eles na verdade são muito mais perigosos aos pobres.

Bauman concorda e traz dados numéricos objetivos para comprovar o que foi dito. E vai além, evidenciando uma dessas situações absurdas e contraditórias do cotidiano atual, que quase sempre passam despercebidas. Referindo-se ao desastre causado pelo furacão Katrina e às atitudes tomadas pelas autoridades, o autor comenta que aparentemente as tropas militares de salvamento foram enviadas muito mais para conter a revolta dos populares e coibir os saques aos supermercados do que para de fato socorrer as vítimas desabrigadas.

No quarto capítulo do livro, ao estabelecer vínculos lógicos entre o medo e a globalização, Bauman se distancia da realidade do Brasil e seu livro perde, a partir desse ponto, identificação com o leitor brasileiro. Não que o Brasil esteja ausente do processo da globalização, ou que o medo contemporâneo ameaçador seja nulo por aqui. Não. Apenas vale comentar que as situações descritas e debatidas por Bauman nessa parte do livro – terrorismo, xenofobia e fascismo, por exemplo –, ainda que sejam conhecidas e já famosas em contextos acadêmicos e reflexivos do Brasil, não parecem fazer parte de um cotidiano concreto mais próximo.

Porém é de se admirar tanto a capacidade intelectual do autor – que zomba dos seus mais de oitenta anos para continuar lançando livros sobre a tal da contemporaneidade líquida –, quanto a sua habilidade de expor ao público sob um novo ângulo situações e contextos já tão debatidos. Bauman não se furta a comentar, por exemplo, as relações entre o Estado e a religião ou os efeitos causados pelo terrorismo no mundo atual – temas já exauridos de discussão. Só que ele o faz sempre a partir de um ponto de vista diferente: mais questionador, menos anestesiado, mais inquieto, menos inocentado.

Ao falar do citado terrorismo, uma das mais intensas fontes de medo nos dias atuais, o livro aborda os atentados que marcaram a história recente, mas sem o maniqueísmo de alguns autores ou o tom pessimista de outros analistas. Ainda que não consiga fugir da dicotomia Oriente-Ocidente – representada justamente por Bagdá e Estados Unidos –, Bauman busca o respaldo de outros nomes importantes e, juntos, chegam a propor soluções de caráter humanista e de abrangência global.

É assim que Benjamin R. Barber é trazido à baila: Nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em sua cama se as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas delas (p. 166). Para Bauman arrematar: O terrorismo só vai definhar e morrer quando (ou se) suas raízes sociopolíticas forem cortadas(p. 143). E concluir: O futuro da democracia e da liberdade tem de ser assegurado em escala planetária – ou não o será (p. 166).

Bauman não é o primeiro teórico a perceber e discutir nada disso. Só que a ele cabe o mérito de ter tirado esses assuntos de uma esfera por demais elevada – e, portanto, muito distante –, para tratá-los de maneira didática e simplificada, sem deixar de ser cientificamente responsável e academicamente embasado.

O último capítulo de Medo líquido não é um resumo do que se passou nas páginas anteriores, como chega a acontecer em alguns outros livros que também se propõem a estudar a contemporaneidade. Não busca a isenção fria dos que se sentem superiores aos problemas dos dias correntes. E menos ainda se abriga na não-responsabilidade séptica dos que se sentem alheios a tudo o que acabaram de escrever.

Ao contrário. De certa forma, Bauman termina seu livro falando das responsabilidades que ele próprio, como pesquisador, talvez tenha. É que, segundo o autor, a função de combater o medo resta simplesmente ao pensamento. Na visão lúcida do polonês, o pensador acadêmico – aquele estudioso envolvido com as questões humanas do planeta – deve ser sempre um otimista e precisa encontrar uma forma de tornar mais positivo e esperançoso o mundo em que se vive. Pelo prisma crítico de Bauman, portanto, o intelectual jamais pode abrir mão da tarefa de procurar o atalho para um mundo mais adequado à habitação humana (p. 221).


BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA


BAUMAN, Zigmunt. Medo líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 239 p.





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