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“Genialidade e Superdotação”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
Autoria:
Bruno Pompeu. mestre
em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo. É, também, publi-citário formado pela ECA-USP e membro do GESC –
Grupo de Estudos em Semiótica, Comunicação, Cultura e Consumo.
INTRODUÇÃO
O mundo urbano contemporâneo está nas
trevas, de cabeça para baixo, sob uma tempestade sem fim. Ao menos é isso o que
sugere a capa do livro Medo Líquido, escrito pelo sociólogo polonês Zigmunt Bauman
e traduzido para o português por Carlos Alberto Medeiros, lançado no Brasil em
2008. Sem embargo de a escrita caminhar para um final conclusivo e esperançoso,
que aponta possíveis soluções para os medos atuais, os seis capítulos do livro
percorrem trechos real-mente sombrios e assustadores, propondo a discussão –
sempre por meio de um olhar surpreendente e inovador – acerca de algumas
situações cotidianas que, de tão ameaçadoras, causam... medo.
Um dos méritos de Bauman é ser objetivo
e claro na hora de compor suas obras. Não apenas seus capítulos são bem
definidos tematicamente, mas também ficam evidentes os intuitos do autor em
cada segmento da obra. Essa objetividade faz com que seja fácil depreender da
leitura quais são as quatro principais origens dos medos contemporâneos: a
morte, o mal, o desconhecido e o global. E Bauman aborda calmamente cada um
desses temas, transformando-os em motes para capítulos bastante analíticos e
instigantes.
Para falar da morte, o autor se vale dos
reality shows, que tanto sucesso fazem nos dias correntes. Longe de serem um
rápido fenômeno televisivo do nosso século (como se chegou a pensar), os
programas de televisão que exploram a “realidade” têm permanecido nas grades das
emissoras. Mais do que isso: novos formatos são criados (cada vez mais
intrusivos e ousados), modelos antigos são reformulados e trazidos novamente ao
ar (para também contemplar os saudosistas do recente) e programas de outros
tipos acabam recorrendo ao formato dos “realities” para garantir o sucesso de
público (já que a criatividade anda às poucas). E Bauman é sagaz ao perceber
que o Big Brother– símbolo do entretenimento midiático contemporâneo – não é um
jogo que procura manter pessoas diferentes dentro de uma casa – o que poderia ser
um exercício de tolerância e respeito ao outro. Pelo contrário: é um jogo cujo
momento central é a eliminação de uma pessoa daquela casa.
O que dá audiência, o que faz sucesso e
o que movimenta o jogo são os momentos em que algum dos participantes é alijado
do convívio com o grupo dominante. Assim, segundo Bauman, os reality showsse transformam
nos contos morais dos nossos dias, ensinando as pessoas a lidarem com a morte
(eliminação) e estabelecendo as novas regras de comportamento social.
Seguindo esse mesmo princípio, o autor
cita o conceito da “morte de terceiro grau”, que seria não exatamente a morte,
mas sim o afasta-mento, a ruptura ou a distância, por motivos circunstanciais.
Ou seja: situações que acabam por banalizar a morte, criando a falsa noção de que
se pode aprender a morrer. Porque o medo que se sente com relação à morte não é
necessariamente o medo de morrer. Bauman diz que o pavor que nos acomete vem
muito mais da certeza da nossa morte, sem que se possa saber quando e como isso
sucederá.
Ao relacionar o medo com o mal, o livro
ganha traços de abstração, tornando mais difícil a tarefa de se arrolar
exemplos cotidianos que pudessem concretizar os assuntos abordados
teoricamente. Mas o autor é didático o suficiente e consegue trazer tais
assuntos ao nível do palatável. Um exemplo disso é quando ele comenta que data do
século XVIII a separação que a filosofia moderna estabeleceu entre os males
naturais (aleatórios e imprevisíveis) e os males causados pelo homem
(intencionais e premeditados). Dando destaque muito mais a estes últimos,
Bauman chega a dizer que se temem os atos de maldade humana porque se nota
neles uma alta carga de racionalidade. Em outras palavras: o que assusta em uma
catástrofe causada pelo homem não é tanto a catástrofe em si, mas muito mais a
intenção e o planeja-mento que forjaram o ato.
A invencibilidade do mal e a
impossibilidade de identificá-lo gera uma grave crise de confiança. E, bem ao
seu estilo provocador e controvertido, apontando a seta das acusações
justamente para o leitor, Bauman chega a dizer que a confiança está em dificuldades
no momento em que tomamos conhecimento de que o mal pode estar oculto em
qualquer lugar; que ele não se destaca na multidão, não porta marcas
distintivas nem carteira de identidade; e que todos podem estar atualmente a seu
serviço, ser seus reservistas em licença temporária ou seus potenciais
recrutas. (p. 93)
Daí que, hoje, e cada vez mais, as
relações humanas sejam motivo de angústias e desconfianças. A crescente
necessidade que se tem por vínculos sólidos, baseados na fidelidade e na lealdade,
colabora para aumentar a ansiedade. Porque já não se pode mais confiar em
ninguém e está borrada a linha que separa os “amigos para toda a vida” dos “inimigos
eternos”.
O terceiro capítulo de Medo líquido é o
que mais dá destaque aos paradoxos do homem nos tempos líquido-modernos, já
propondo desde o início que a atual situação de iminente extinção da espécie – devida
aos artefatos bélicos criados e colecionados por vários países é fundamental
para que o verdadeiro fim seja postergado. Ou seja: a ameaça de mútuo (e na
verdade auto) aniquilamento é de fato indispensável para que se adie a extinção
(Bauman, 2008, p. 97).Mais adiante, ao comentar novamente o embate entre o
homem e a natureza, o sociólogo polonês mostra seu lado acadêmico e cita um outro
autor, o professor Martin Espada. Que por sua vez soa convincente ao dizer que,
embora se costume pensar nos desastres naturais como algo aleatório e
eqüitativamente distribuído pelo mundo, eles na verdade são muito mais
perigosos aos pobres.
Bauman concorda e traz dados numéricos
objetivos para comprovar o que foi dito. E vai além, evidenciando uma dessas
situações absurdas e contraditórias do cotidiano atual, que quase sempre passam
despercebidas. Referindo-se ao desastre causado pelo furacão Katrina e às
atitudes tomadas pelas autoridades, o autor comenta que aparentemente as tropas
militares de salvamento foram enviadas muito mais para conter a revolta dos
populares e coibir os saques aos supermercados do que para de fato socorrer as vítimas
desabrigadas.
No quarto capítulo do livro, ao
estabelecer vínculos lógicos entre o medo e a globalização, Bauman se distancia
da realidade do Brasil e seu livro perde, a partir desse ponto, identificação
com o leitor brasileiro. Não que o Brasil esteja ausente do processo da
globalização, ou que o medo contemporâneo ameaçador seja nulo por aqui. Não.
Apenas vale comentar que as situações descritas e debatidas por Bauman nessa
parte do livro – terrorismo, xenofobia e fascismo, por exemplo –, ainda que sejam
conhecidas e já famosas em contextos acadêmicos e reflexivos do Brasil, não parecem
fazer parte de um cotidiano concreto mais próximo.
Porém é de se admirar tanto a capacidade
intelectual do autor – que zomba dos seus mais de oitenta anos para continuar
lançando livros sobre a tal da contemporaneidade líquida –, quanto a sua habilidade
de expor ao público sob um novo ângulo situações e contextos já tão debatidos.
Bauman não se furta a comentar, por exemplo, as relações entre o Estado e a
religião ou os efeitos causados pelo terrorismo no mundo atual – temas já
exauridos de discussão. Só que ele o faz sempre a partir de um ponto de vista
diferente: mais questionador, menos anestesiado, mais inquieto, menos
inocentado.
Ao falar do citado terrorismo, uma das
mais intensas fontes de medo nos dias atuais, o livro aborda os atentados que
marcaram a história recente, mas sem o maniqueísmo de alguns autores ou o tom pessimista
de outros analistas. Ainda que não consiga fugir da dicotomia Oriente-Ocidente
– representada justamente por Bagdá e Estados Unidos –, Bauman busca o respaldo
de outros nomes importantes e, juntos, chegam a propor soluções de caráter
humanista e de abrangência global.
É assim que Benjamin R. Barber é trazido
à baila: Nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em sua cama se
as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas delas (p. 166).
Para Bauman arrematar: O terrorismo só vai definhar e morrer quando (ou se)
suas raízes sociopolíticas forem cortadas(p. 143). E concluir: O futuro da
democracia e da liberdade tem de ser assegurado em escala planetária – ou não o
será (p. 166).
Bauman não é o primeiro teórico a
perceber e discutir nada disso. Só que a ele cabe o mérito de ter tirado esses
assuntos de uma esfera por demais elevada – e, portanto, muito distante –, para
tratá-los de maneira didática e simplificada, sem deixar de ser cientificamente
responsável e academicamente embasado.
O último capítulo de Medo líquido não é
um resumo do que se passou nas páginas anteriores, como chega a acontecer em
alguns outros livros que também se propõem a estudar a contemporaneidade. Não busca
a isenção fria dos que se sentem superiores aos problemas dos dias correntes. E
menos ainda se abriga na não-responsabilidade séptica dos que se sentem alheios
a tudo o que acabaram de escrever.
Ao contrário. De certa forma, Bauman
termina seu livro falando das responsabilidades que ele próprio, como
pesquisador, talvez tenha. É que, segundo o autor, a função de combater o medo
resta simplesmente ao pensamento. Na visão lúcida do polonês, o pensador
acadêmico – aquele estudioso envolvido com as questões humanas do planeta –
deve ser sempre um otimista e precisa encontrar uma forma de tornar mais positivo
e esperançoso o mundo em que se vive. Pelo prisma crítico de Bauman, portanto,
o intelectual jamais pode abrir mão da tarefa de procurar o atalho para um
mundo mais adequado à habitação humana (p. 221).
BIBLIOGRAFIA
RECOMENDADA
BAUMAN,
Zigmunt. Medo
líquido. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, 239 p.
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