Blog “Genialidade e
Superdotação”, de autoria de Superdotado Álaze Gabriel.
ORIGEM E EVOLUÇÃO DA NEUROPSICOLOGIA
As observações clínicas
realizadas no Século XIX demonstraram que lesões em determinadas regiões do
cérebro se correlacionavam com certas alterações do comportamento e da
cognição. P. ex., se uma pessoa sofre isquemia numa região lateral, inferior e
posterior do lobo frontal esquerdo (a área de Broca) ela poderá apresentar um
quadro de afasia caracterizado por perda de fluência na fala, dificuldades
articulatórias, dificuldades com a sintaxe, prejuízo ao uso de flexões verbais,
preposições e conjunções com preservação do uso de substantivos e adjetivos
além de preservação relativa da capacidade de compreensão oral, constituindo
uma síndrome conhecida como afasia de Broca.
Por outro lado, se uma
pessoa sofre isquemia em uma região lateral, superior e posterior do lobo
temporal esquerdo (a área de Wernicke), poderá apresentar um quadro de afasia
caracterizado por fala abundante porém desprovida de significado, sintaxe quase
normal, escassez de substantivos e adjetivos e melhor uso de verbos,
preposições e conjunções, além de dificuldades acentuadas na compreensão oral.
Esse quadro é conhecido como afasia de Wernicke. Mais adiante serão discutidas
as principais síndromes neuropsicológicas que comprometem o cérebro em
desenvolvimento.
A neuropsicologia é,
portanto, a disciplina científica e clínica que estuda as relações entre
cérebro e comportamento. O método da neuropsicologia é a correlação anátomo-clínica
ou correlação estrutura-função: os achados sobre o comportamento e atividade
cognitiva do paciente são correlacionados com modelos de localização funcional
no cérebro. Os objetivos da neuropsicologia são de dupla natureza: a) localizar
a lesão em termos de um modelo de correlação estrutura-função; b) obter
informações sobre o perfil de funções comprometidas e preservadas para orientar
o processo de reabilitação.
Segundo Luria (1981), a Neuropsicologia é a área
específica da Psicologia que tem como objetivo peculiar a investigação do papel
de sistemas cerebrais individuais em formas complexas de atividades mentais.
Assim Luria acreditava que o propósito da Neuropsicologia
era:"...generalizar idéias modernas concernentes à base cerebral do
funcionamento complexo da mente humana e discutir os sistemas do cérebro que
participam na construção de percepção e ação, de fala e inteligência, de
movimento e atividade consciente dirigida a metas." ( Luria,1981, p. 4).
Outros autores como Gil (2002) e Mello (1996)
acreditam que a Neuropsicologia visa o estudo dos distúrbios cognitivos,
emocionais e comportamentais, bem como o estudo dos distúrbios de personalidade
provocados por lesões do cérebro, que é o órgão do pensamento e, portanto, a
sede da consciência.
A Neuropsicologia surgiu no final do século XIX,
início do século XX, estudando os soldados feridos de guerra, que tinham lesões
cerebrais e alterações de comportamento, memória, linguagem, raciocínio - o que
possibilitou maior compreensão do papel do cérebro comandando esses processos. Os neurologistas e psiquiatras europeus e
norte-americanos começaram a estudar sistematicamente o comportamento de
pessoas com os mais diversos tipos de lesões cerebrais e doenças
neuropsiquiátricas. No Século XIX existia, e em alguns países como a Alemanha
ainda existe uma especialidade denominada neuropsiquiatria (“Nervenheilkunde”).
“Nervenarzt” ou “médico de nervos” é o título de um periódico tradicional na
Alemanha. Em outros países a neurologia cognitiva ou comportamental é a especialidade
médica contemporânea que participa da área interdisciplinar de conhecimento
denominada neuropsicologia. Contudo,
somente no final do século XX, que ganhou maior reconhecimento. Os anos 90
ficaram conhecidos como a "Década do Cérebro", uma vez que o
aprimoramento de técnicas de neuroimagem possibilitou a confirmação das
interações entre as funções cognitivas e as áreas cerebrais.
Segundo Andrade & cols. (2004), sua criação
deu-se a partir da convergência de várias ciências como, por exemplo: a
Psicologia experimental, destacando a importância do estruturalismo (Wundt),
funcionalismo (James) e behaviorismo (Watson e Skinner), com a Neurologia
focada nas alterações comportamentais e a fisiologia. A Psicologia experimental
buscava a compreensão dos comportamentos humanos, das diversas formas de
aprendizagem e das estruturas cerebrais responsáveis pelas funções cognitivas.
A Neurologia das alterações comportamentais, por sua vez, buscava compreender
como as lesões cerebrais se relacionavam com o funcionamento das cognições e
dos comportamentos dos sujeitos.
Assim sendo com o estabelecimento da
Neuropsicologia como campo integrador dessas multi - áreas, um novo e mais
acurado método de investigação individual do sistema nervoso e suas complexas formas
de atividades foi desenvolvido.
Além de elucidar os mecanismos de ação por traz das
funções cognitivas e dos comportamentos, a Neuropsicologia tem um papel clínico
bem definido que é o de atuar no diagnóstico e conseqüente estabelecimento de
programas reabilitatórios para indivíduos com qualquer tipo de seqüela
neuronal.
O PAPEL DO NEUROPSICÓLOGO
O Neuropsicólogo hoje é um profissional que atua em
diversas instituições, desenvolvendo atividades como diagnóstico, reabilitação,
orientação à família e trabalho em equipe multidisciplinar. Os principais
locais onde o Neuropsicólogo é requisitado incluem: instituições acadêmicas
(pesquisa, docência), hospitais (avaliações pré e pós-cirúrgica), juizados
(avaliação e perícias), clínicas (avaliação, reabilitação e pesquisa),
consultórios privados e atendimentos domiciliares (reabilitação).
Além disso, fornece dados objetivos e formula
hipóteses sobre o funcionamento cognitivo, atuando como auxiliar na tomada de
decisões de profissionais de outras áreas, fornecendo dados que contribuam para
as escolhas de tratamento medicamentoso e cirúrgico.A Neuropsicologia tem um
histórico grande de estudo de indivíduos que tinham transtornos e seqüelas que
envolviam o cérebro e a cognição. Ainda hoje a grande parte da população que
procura um Neuropsicólogo vem encaminhada por Psicólogos, Psiquiatras e
Neurologistas. Essa população de pessoas que sofreram algum tipo de transtornos
e/ou seqüelas, é a grande maioria, entretanto existe uma pequena parcela que
procura o Neuropsicólogo por preocupações de desempenho cognitivo, como por
exemplo, um esquecimento, ou uma falta de concentração em atividades, gerando
assim um campo que poderia ser chamado como "Neuropsicologia
Preventiva".
Hoje a Neuropsicologia é sem sombra de dúvida uma
área da Psicologia que está em franca expansão. Grupos de estudo, cursos
rápidos, pós - graduação tanto Lato quanto Stricto Sensu estão pipocando pelo
Brasil, entretanto ainda existe uma grande quantidade de profissionais da área
da saúde, incluindo. Em 2004 o Conselho Federal de Psicologia reconheceu a
Neuropsicologia como especialidade da Psicologia (Resolução CFP Nº 002/2004),
com isso algumas diretrizes sobre a Neuropsicologia foram escritas pela
primeira vez de forma reconhecida pelo Conselho Federal de Psicologia, sendo
que, segundo o mesmo, existem 3 campos de atuações que são fundamentais na
profissão do Neuropsicólogo:
1. Diagnóstico - Através do uso de instrumentos
(testes, baterias, escalas) padronizados para avaliação das funções cognitivas,
o Neuropsicólogo irá pesquisar o desempenho de habilidades como atenção,
percepção, linguagem, raciocínio, abstração, memória, aprendizagem, habilidades
acadêmicas, processamento da informação, visuoconstrução, afeto, funções
motoras e executivas. Esse diagnóstico tem por objetivo poder coletar os dados
clínicos para auxiliar na compreensão da extensão das perdas e explorar os
pontos intactos que cada patologia provoca no sistema nervoso central de cada
paciente. A partir desta avaliação Neuropsicológica é possível estabelecer
tipos de intervenção, de reabilitação particular e específica para indivíduos
e/ou grupos de pacientes com disfunções adquiras ou não, genéticas ou não,
primariamente Neurológicas ou secundariamente a outros distúrbios
(Psiquiátricos).
2. Tratamento (Reabilitação) - Com o diagnóstico em
mãos é possível realizar as intervenções necessárias junto aos pacientes, para
que possam melhorar, compensar, contornar ou adaptar-se às dificuldades. Essas
intervenções podem ser no âmbito do funcionamento cognitivo, ou seja, no
trabalho direto com as funções cognitivas (memória, linguagem, atenção, etc.)
ou com um trabalho muito mais ecológico, no ambiente de convivência do
paciente, junto de seus familiares, para que atuem como co-participantes do
processo reabilitatório; junto a equipes multiprofissionais e instituições
acadêmicas e profissionais, promovendo a cooperação na inserção ou re-inserção
de tais indivíduos na comunidade quando possível, ou ainda, na adaptação
individual e familiar quando as mudanças nas capacidades do paciente forem mais
permanentes ou de longo prazo.
3. Pesquisa - A pesquisa em Neuropsicologia envolve
o estudo de diversas áreas, como o estudo das cognições, das emoções, da
personalidade e do comportamento sob o enfoque da relação entre estes aspectos
e o funcionamento cerebral. Para tais pesquisas o uso de testes
Neuropsicológicos é um recurso utilizado, para assim ter um parâmetro do
desempenho do paciente nas determinadas funções que estão sendo pesquisadas.
Atualmente o uso de drogas específicas, para estimulação ou inibição de
determinadas funções, tem sido usadas com freqüência para observar o
comportamento e o funcionamento cognitivo dos sujeitos em dadas situações.
Outra técnica que muito tem contribuído nas Neurociências e com grande
especificidade na Neuropsicologia é o uso de neuroimagem funcional por
Ressonância Magnética (fMRI) e tomografia funcional por emissão de pósitrons
(PET-CT) que permitem mapear determinadas áreas relacionadas a atividades
específicas, como por exemplo recordação de listas de palavras durante o exame.
Portanto, fica claro que a Neuropsicologia é um campo de trabalho e de pesquisa
emergente, tanto para a Psicologia, quanto para as Neurociências, avançando e
contribuindo de forma única para a compreensão do modo como pensamos e agimos
no mundo.
NEUROPSICOLOGIA
E AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA
A Neuropsicologia pode ser definida como a ciência
que estuda a expressão comportamental das disfunções cerebrais (Lezak,2004).
Trata-se de um campo do conhecimento que relaciona a cognição, comportamento e
atividade do sistema nervoso central em condições normais e patológicas.
A Avaliação Neuropsicológica envolve o exame de
diversos domínios cognitivos como Memória; Atenção; Linguagem; Raciocínio
Lógico; Conceituação; Habilidades Motoras; Percepção Visual; Visuoconstrução;
Orientação; Funções Executivas; Humor. Os dados obtidos na avaliação
neuropsicológica podem ser comparados com população da mesma idade, sexo e
escolaridade.
No tratamento de crianças e adolescentes a
avaliação neuropsicológica identifica questões envolvidas no desempenho
acadêmico. Em casos de adultos a avaliação pode indicar o quanto a memória ou
outro aspecto cognitivo se apresenta alterado em relação ao esperado para a idade,
sexo e escolaridade. Também pode ser utilizado para contribuir na identificação
de Altas Habilidades/Superdotação em crianças e adolescentes para aceleração educacional.
Os testes utilizados na avaliação neuropsicológica
permitem a identificação de diferentes níveis de comprometimento das funções
cognitivas a partir da mensuração das possíveis disfunções cerebrais que
acometem o indivíduo.
Recomenda-se a avaliação neuropsicológica em
qualquer caso onde exista suspeita de uma dificuldade cognitiva de origem
neurológica ou comportamental: Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade; Distúrbios do desenvolvimento; Dificuldades escolares;
Diagnóstico diferencial entre Depressão e Demência; Epilepsia; Distúrbios
psiquiátricos ou neuropsiquiátricos; Lesões cerebrais decorrentes de
traumatismos; Doença de Alzheimer, Doença de Parkinson e outros tipos de
Demências; Acidente Vascular Cerebral (AVC); Esclerose múltipla e outras
doenças neurodegenerativas; Déficits causados por abuso de drogas e álcool e outras
substâncias.
FUNÇÕES
EXECUTIVAS NEUROPSICOLÓGICAS
As
funções executivas referem-se, de forma geral, à capacidade do sujeito de
engajar-se em comportamentos orientados a objetivos, ou seja, à realização de
ações voluntárias, independentes, autônomas, auto-organizadas e orientadas para
metas específicas (SULLIVAN; RICCIO; CASTILLO, 2009; GAZZANIGA; IVRY; MANGUN,
2002). Segundo Malloy- Diniz, Sedo, Fuentes e Leite (2008), as funções executivas
são habilidades que, integradas, capacitam o indivíduo a tomar decisões,
avaliar e adequar seus comportamentos e estratégias, buscando a resolução de um
problema. Tais funções orientam e gerenciam funções cognitivas, emocionais e
comportamentais (MALLOY-DINIZ et al., 2008; STRAUSS; SHERMAN; SPREEN, 2006).
Huizinga,
Dolan e Molen (2006) enfatizam que as funções executivas são representadas por
habilidades distintas, ainda que relacionadas, e não apenas por uma única habilidade
cognitiva, apesar da existência de controvérsias acerca da unidade versus
diversidade de tais funções. Tais habilidades incluem inibição de elementos
irrelevantes; seleção, integração e manipulação das informações relevantes;
intenção; planejamento e efetivação das ações; flexibilidade cognitiva e comportamental
e monitoramento de atitudes (GAZZANIGA et al., 2002; LEZAK, 1995).
Em
uma descrição bastante sumarizada, a atenção seletiva, de acordo com Gazzaniga
e colaboradores (2002), é a capacidade de o sujeito atentar a determinadas características
do estímulo, ignorando aqueles que são irrelevantes à tarefa, de modo a processar
ativamente uma quantidade limitada de informações dentre as disponíveis aos
órgãos dos sentidos ou provenientes de outros processos cognitivos. O controle
inibitório relaciona-se à filtragem e seleção de informações (GAZZANIGA et al.,
2002), consistindo na capacidade do indivíduo de inibir respostas prepotentes
ou distratoras que bloqueiam o curso de uma ação, ou ainda a interrupção de uma
resposta já em curso (BARKLEY, 1997). Em outras palavras, compreende-se o
controle inibitório como um mecanismo de filtragem complementar à atenção
seletiva, à medida que inibe estímulos irrelevantes à solução de um problema, minimizando
assim a demanda sobre o processamento da informação (GAZZANIGA ET al., 2002).
A
memória de trabalho é um depósito temporário de armazenamento de informações que
podem ser acessadas, manipuladas e reorganizadas para serem utilizadas em
alguma tarefa, como guardar um número de telefone para logo em seguida utilizá-lo
ao fazer uma ligação (MALLOY-DINIZ et al., 2008). Ainda, esse sistema permite
uma série de operações mentais, tal como integrar a informação a estímulos
ambientais e conhecimentos anteriores advindos da memória de longo prazo, permitindo
a manipulação ativa da informação e sua constante atualização na própria
memória de trabalho (BADDELEY, 2000; GAZZANIGA ET al., 2002; LEZAK; HOWIESON;
LORING, 2004; MALLOY-DINIZ et al., 2008).
A
flexibilidade cognitiva, por sua vez, pressupõe a capacidade de mudar ou
alternar estratégias de ação ou pensamento, conforme a necessidade para a
resolução de um problema. Esta habilidade é requerida sempre que o indivíduo
engaja-se em ações complexas e deve, portanto, considerar diversificadas
informações, alternando o foco atencional entre duas ou mais tarefas consoante às
demandas do ambiente (GAZZANIGA et al., 2002; GIL, 2002; LEZAK et al., 2004;
MALLOY-DINIZ et al., 2008).
Assim,
de acordo com Lezak e colaboradores (2004), a flexibilidade cognitiva é
fundamental à capacidade de regular o próprio comportamento, adaptando-o às
demandas ambientais. O planejamento é a capacidade de estabelecer uma estratégia
seqüencial direcionada a atingir um
objetivo, ou seja, refere-se ao componente cognitivo central a qualquer tarefa
de resolução de problemas, especialmente àquelas que abarcam soluções originais,
novas ou não rotineiras (KRIKORIAN; BARTOK; GAY, 1994), e promovem a identificação
e a organização de uma série de ações e elementos direcionados à realização do
objetivo (LEZAK et al., 2004).
Por
fim, o monitoramento pode ser compreendido como uma rede de controle executivo,
à medida que, detectando uma situação geradora de conflito ou um erro, e objetivando
a correção e regulação desse comportamento, pode alocar recursos de processamento
extras à tarefa em questão, com intuito de facilitar ou inibir seu engajamento
em direção à resolução do conflito ou correção do erro (GAZZANIGA et al.,
2002). Sob essa perspectiva, essas habilidades cognitivas supracitadas abarcam
as funções executivas, as quais permitem a um indivíduo iniciar, planejar, sequenciar
e monitorar seus comportamentos e cognições (GAZZANIGA et al., 2002).
Alterações
nestas habilidades têm sido consistentemente relacionadas a diversos quadros e
condições clínicas, conforme sumariado por Dias (2009), por exemplo: lesões em
regiões pré-frontais; quadros psicopatológicos, como a esquizofrenia; transtornos
de comportamento disruptivo, como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade;
transtornos globais do desenvolvimento; epilepsia; Síndrome de Down; Síndrome
de Prader-Willi; entre outros.
Há,
também, evidências de alterações executivas em alguns transtornos de aprendizagem
(DIAS, TREVISAN, MENEZES, GODOY; SEABRA, no prelo) e relações consistentes
estabelecidas com o desempenho escolar (CAPOVILLA; DIAS, 2008; VITARO, BRENDGEN,
LAROSE & TREMBLAY, 2005). No entanto, existe maior escassez de estudos que
busquem investigar as relações entre o funcionamento executivo e as altas habilidades.
O objetivo deste artigo teórico é apresentar algumas evidências encontradas na literatura
acerca da temática altas habilidades e sua relação com as funções executivas.
CONSIDERAÇÕES
SOBRE AS ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO
A
investigação de indivíduos com altas habilidades, segundo Hazin, Lautert, Falcão,
Garcia, Gomes e Borges (2009), não tem despertado o interesse dos pesquisadores
tanto quanto o estudo de crianças que apresentam déficits de diferentes
naturezas, tais como senso-perceptuais, psicomotores, afetivo-relacionais, cognitivos,
entre outros, embora todos esses grupos estejam formalmente inseridos nos
projetos nacionais de educação para indivíduos com necessidades especiais (BRASIL,
2001). É provável que tal postura de afastamento dos pesquisadores tenha relação
com a controvérsia em torno da caracterização do que seria uma alta habilidade.
(WINNER, 1998, 2000). Assim, diversos conceitos são utilizados para definir
quem é a pessoa com altas habilidades.
De
acordo com Rech e Freitas (2005), nem os próprios pesquisadores chegaram a um consenso
em relação à terminologia mais apropriada para ser utilizada. No Brasil, em 1995,
a partir das Diretrizes Gerais para o Atendimento Educacional aos Alunos com
Altas Habilidades/ Superdotação e Talentos, estabelecidas pela Secretaria de
Educação Especial do Ministério da Educação e Desporto, foi proposta a seguinte
definição: Altas habilidades referem-se aos comportamentos observados e/ou
relatados que confirmam a expressão de traços consistentemente superiores em
relação a uma média (por exemplo: idade, produção ou série escolar) em qualquer
campo do saber ou do fazer. Deve-se entender por 'traços’ as formas
consistentes, ou seja, aquelas que permanecem com freqüência e duração no
repertório dos comportamentos da pessoa, de forma a poderem ser registradas em épocas
diferentes e situações semelhantes. (BRASIL, 1995, p. 13).
Sternberg
(1981) considera o termo altas habilidades equivalente ao termo superdotação, o
qual corresponde a um elenco de características específicas que se apresentam
de forma notável, consistente e permanente no indivíduo, proporcionando certo
destaque em algum campo do conhecimento e/ou realização, que variam desde
atividades notadamente intelectuais, como a pesquisa científica e a produção
literária, até a resolução eficiente e criativa de questões corriqueiras, como planejamento
e relação com o outro.
A
superdotação, entendida como um fenômeno multidimensional, agrega todas as características
de desenvolvimento do indivíduo, abrangendo tanto aspectos cognitivos quanto
características afetivas, neuropsicomotoras e de personalidade. Conforme Rech e
Freitas (2005), o conceito de superdotação é influenciado pelo contexto histórico
e cultural, variando então de cultura para cultura em função do momento
histórico e social. Alencar e Fleith (2001) enfatizam que não existe um
consenso entre profissionais quanto à definição de quem deveria ser considerado
com altas habilidades/superdotação.
Nesse
particular, há uma tendência em considerar como superdotados aqueles que demonstram
habilidades acima da média em um ou mais domínios, seja intelectual, artístico
ou das relações sociais, produções criativas, esportivas e psicomotoras. Winner
(1998) define o indivíduo superdotado como uma pessoa em desenvolvimento que
apresenta um desempenho superior à média em uma ou mais áreas, comparados à
população geral da mesma faixa etária.
Muitas
das características presentes nestes indivíduos diferem das encontradas em sujeitos
da mesma faixa etária. Entretanto, Piechowski (1986) afirma ainda que os indivíduos
com altas habilidades freqüentemente demonstram extrema facilidade para se
expressar nas áreas psicomotora, intelectual, imaginativa, emocional e dos sentidos.
Sob esse aspecto, Oliveira (2007) destaca que o conceito das altas habilidades pode
partir do pressuposto defendido por
Renzulli
(1986, 2007) relacionado ao modelo dos Três Anéis. Este modelo compreende a superdotação
como resultado da interação entre três agrupamentos básicos do funcionamento cognitivo:
habilidades gerais e/ou específicas acima da média, elevados níveis de comprometimento
com a tarefa e elevados níveis de criatividade. Para o autor, as habilidades podem
ser gerais (raciocínio numérico, fluência verbal, memória, raciocínio abstrato,
relações espaciais) ou mais específicas (matemática, música, química, dança).
Mas é a interação entre os três fatores que permite a realização criativa-produtiva.
Tal realização pode manifestar-se como habilidades superiores gerais em uma ou
mais áreas especializadas de conhecimento ou de realização humana (como por
exemplo, artes plásticas, liderança, fotografia).
Numa
tentativa de complementar o modelo dos Três Anéis, Mönks (1988, 1992) aponta a
necessidade das diversas dimensões anteriormente citadas exigirem condições de educação,
de vida e de realização adequadas ou estimulantes. O autor integra a concepção anterior
com uma perspectiva desenvolvimental, baseada nos mecanismos socioculturais e psicossociais
relacionados com a superdotação.
Posteriormente,
a definição da superdotação passou a incluir dimensões psicossociais
complementares da inteligência ou das habilidades cognitivas (OLIVEIRA, 2007). Assim,
segundo esse autor, os indivíduos superdotados em termos de funcionamento cognitivo
apresentam três processos intelectuais marcadamente diferentes dos demais, a
saber: a capacidade de separar informação relevante de outra irrelevante; a
capacidade de combinar elementos singulares de informação em conjuntos mais
abrangentes e diversos no seu significado; e a capacidade de relacionar a nova informação
com os conhecimentos já possuídos.
Estas
concepções teóricas a respeito das altas habilidades podem conduzir à hipótese de
que estes indivíduos possuem também alto funcionamento executivo. Essa inferência
é abordada na breve revisão a seguir.
RELAÇÕES ENTRE
FUNÇÕES EXECUTIVAS E ALTAS HABILIDADES/SUPERDOTAÇÃO
Em
uma revisão sobre o tema, Geake (2008) retomou uma série de pesquisas e esboçou
algumas relações entre altas habilidades intelectuais e o funcionamento executivo.
Segundo o autor, as altas habilidades são resultado de uma facilitação no
engajamento em raciocínio analógico fluido. Este, por sua vez, refere-se a um
processo cognitivo básico, caracterizado pela capacidade em estabelecer e compreender
analogias e, portanto envolve raciocínio dedutivo-indutivo. Da mesma forma, McGrew
e Flanagan (1998) enfatizaram que a inteligência fluida (Gf) é a mais
relacionada às funções executivas por se tratar de operações mentais de raciocínio
que o indivíduo realiza diante de situações novas, que não podem ser realizadas
automaticamente e que dependem minimamente de conhecimentos adquiridos.
Essas
operações envolvem relacionar idéias, induzir conceitos abstratos e solucionar problemas,
empregando principalmente raciocínio indutivo e dedutivo (McGREW; FLANAGAN,
1998). Porém, diferentemente do raciocínio analógico exato, tipicamente mensurado
em muitos testes de inteligência, em que há apenas uma resposta correta, a
habilidade apresentada por Geake (2008) é fluida, ou seja, em sua avaliação há
uma gama de respostas possíveis, que diferem entre si em relação a quanto são plausíveis
e criativas. Para o autor, esta habilidade é a característica mais notável de crianças
consideradas talentosas ou com altas habilidades. Também destaca que estes indivíduos
talentosos possuem melhor habilidade de memória de trabalho. Esboçando algumas
relações entre os construtos, Geake (2008) argumentou que o raciocínio analógico
fluido em indivíduos talentosos poderia explicar sua maior eficácia em memória
de trabalho e ambos estariam relacionados a altos níveis de criatividade.
Vale
enfatizar, no entanto, que algumas evidências da relação entre o raciocínio analógico
fluido e as habilidades executivas, como a memória de trabalho, provêm principalmente
de estudos de neuroimagem. Tais afirmações pautam-se nos achados prévios de
Geake (2004) e na literatura, em que maior atividade do córtex pré-frontal tem
sido observada em jovens superdotados, atividade essa que tem sido relacionada
ao controle voluntário da atenção, planejamento, autocontrole e tomada de decisões.
Para Simonetti (2008), estas diferenças nas áreas cerebrais ativadas seriam
devido à maior competência em organizar os pensamentos e operações. Por sua
vez, esta capacidade de organização é um aspecto metacognitivo relacionado ao
próprio funcionamento executivo (GAZZANIGA et al., 2002; MALLOY-DINIZ et al.,
2008). Ainda, correlatos neuroanatômicos da inteligência têm sido relatados,
incluindo diferenças na densidade tanto da substância branca quanto cinzenta
entre indivíduos com alto e médio QI. Há evidências, por exemplo, de que
adolescentes com altas habilidades possuem maior espessura cortical,
especialmente no córtex pré-frontal (GEAKE, 2008), região que é, reconhecidamente,
o substrato neurológico que suporta as operações das funções executivas (GAZZANIGA
et al., 2002; GIL, 2002).
De
fato, conforme preconizou Arffa (2007), as habilidades relacionadas às funções executivas
sobrepõem-se ao conceito psicológico de comportamento inteligente. Porém,
conforme revisado pela mesma autora, a relação entre desempenhos em testes de inteligência
e em testes de funções executivas não é forte. Além disso, comprometimentos no lobo
frontal, que podem prejudicar as funções executivas, tendem a não resultar em
prejuízos no quociente de inteligência (ROCA; PARR; THOMPSON; WOOLGAR;
TORRALVA; ANTOUN; MANES; DUNCAN, 2010). Tais resultados, juntamente com outros
estudos, têm sugerido que, dentre as funções executivas, algumas estejam mais
associadas à inteligência do que outras (JOHNSTONE, HOLLAND; LARIMORE, 2000).
Na
investigação de Friedman, Miyake, Corley, Young, DeFries e Hewitt (2006), por exemplo,
foram analisadas as relações de inteligência fluida e cristalizada e o QI no Wechsler
Adult Intelligence Scale (WAIS) com três habilidades executivas diferentes:
controle inibitório, flexibilidade cognitiva e memória de trabalho, em adultos
jovens. A memória de trabalho mostrou-se altamente correlacionada com medidas
de inteligência, mas não com controle inibitório e flexibilidade. Além disso, no
modelo de equação estrutural, a memória de trabalho permaneceu fortemente
relacionada à inteligência, mas as relações de controle inibitório e
flexibilidade com inteligência foram muito pequenas e não significativas. Tais
resultados sugerem que as medidas de inteligência se relacionam diferentemente
com esses três tipos de funções executivas, ou seja, medidas de inteligência
não avaliam igualmente uma ampla gama de habilidades executivas, as quais são
igualmente requeridas para comportamentos que envolvem adequado desempenho
cognitivo (FRIEDMAN et al., 2006).
Com
o objetivo de avaliar mais detalhadamente a relação entre funções executivas e inteligência,
Arffa (2007) avaliou três grupos de crianças e jovens com idades que variaram
de 6 a 15 anos: grupo com habilidade intelectual na média (QI entre 90 e 114),
acima da média (QI variando de 115 a 129) e talentoso (QI acima de 130). Nesse
estudo, a autora aplicou cinco testes neuropsicológicos para avaliar funções
executivas, a saber, Teste de Categorização de Cartas de Wisconsin, Teste de Trilhas,
Teste de Stroop, Teste de Fluência de Palavras (Oral Word Association Test - COWAT),
Teste de Fluência de Desenhos; quatro testes neuropsicológicos de outras habilidades
não-executivas, incluindo Figura Complexa de Rey (RCF), Rey Auditory Verbal Learning
Test (RAVLT), Wide Range Achievement Test Reading and Math (WRAT- 3) e
Underlining Test; e um teste de inteligência, a Escala de Inteligência Wechsler
para crianças (WISC-III).
Os
principais resultados apontaram, por meio da análise de regressão múltipla, que
os Testes de Stroop, Fluência de Palavras, Fluência de Desenhos e Figura
Complexa de Rey correlacionam-se significativamente com a inteligência medida
pelo QI total no WISC (p < 0,001). Já o Teste de Trilhas não apresentou associações
significativas com a inteligência. Ainda, verificou-se, por meio de MANCOVA, que
o grupo de jovens talentosos apresentou desempenho superior nos testes de funções
executivas quando comparado aos outros dois grupos (habilidade intelectual média
e acima da média), mas tal superioridade não foi observada em relação a testes
não-executivos (ARFFA, 2007).
Em
outro estudo, Johnson, Im-Bolter e Pascual-Leone (2003) avaliaram crianças
entre seis e 11 anos de idade, oriundas de programas especializados para crianças
com altas habilidades e de escolares regulares. As crianças foram avaliadas
quanto à capacidade atencional, controle inibitório e velocidade de processamento.
Quando comparadas com seus pares, as crianças com altas habilidades obtiveram
desempenho melhor nas medidas de atenção, respondendo mais rapidamente em tarefas
de velocidade com vários níveis de complexidade, e também foram mais habilidosas
para resistir à interferência em tarefas que exigiam controle inibitório voluntário.
Não houve diferenças entre os grupos em uma tarefa que exigia controle inibitório
automático, o que sugere a existência de dimensões diferentes dentro da habilidade
de
controle inibitório (JOHNSON et
al., 2003).
Os
poucos estudos que abordaram esta temática têm revelado inconsistências na
relação entre funções executivas e inteligência, o que justifica, por sua vez,
o desenvolvimento de pesquisas relacionadas a essa temática, especialmente no
que se refere ao desempenho em tarefas de funções executivas de crianças e adolescentes
com altas habilidades. Hazin e colaboradores (2009) afirmam que as discrepâncias
entre os dois construtos podem ser igualmente problematizadas a partir de
alguns mitos existentes acerca das altas habilidades, tais como a crença de que
as crianças com altas habilidades apresentam um desenvolvimento homogêneo em
todas as funções cognitivas; e a expectativa de que a capacidade intelectual e
o desempenho escolar/acadêmico sejam fortemente correlacionadas (WINNER, 2000).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O
objetivo dessa postagem foi apresentar algumas concepções teóricas acerca das
relações entre neuropsicologia e as altas habilidades/superdotação, por meio da
análise cabal das funções executivas neuropsicológicas. De acordo com o cenário
exposto, ainda há grande carência de estudos científicos nacionais e
internacionais que tenham investigado o funcionamento cognitivo de indivíduos
com altas habilidades, notadamente em torno das funções executivas. Conforme contextualizado
por Hazin e colaboradores (2009), mesmo o alto habilidoso sendo incluído nos
projetos nacionais de educação para indivíduos com necessidades especiais, é escasso
o desenvolvimento de pesquisas empíricas desta natureza.
Compreender
a relação entre funções executivas e altas habilidades faz-se importante na ciência
psicológica e neuropsicológica, uma vez que é discutível se crianças com
superioridade em determinadas habilidades podem apresentar dificuldades de
aprendizagem como consequência de déficits atencionais, de funcionamento
executivo, de linguagem e/ou de memória (SILVERMAN, 2007; RECH; FREITAS, 2005;
WEBB; DIETRICH, 2005).
Além
disso, déficits em funções executivas estão relacionados a uma série de outros quadros
que podem acometer crianças e adolescentes, como o autismo (BOSA, 2001), o transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade (TOPLAK; BUCCIARELLI; JAIN; TANNOCK,
2009), o transtorno obsessivocompulsivo (CHANG; MCCRACKEN; PIACENTINI, 2007;
FONTENELLE, 2001), e estão também relacionadas ao desempenho escolar (CAPOVILLA
& DIAS, 2008; VITARO, et al., 2005).
Sob
essa perspectiva, faz-se necessária a implementação de estratégias que façam repercutir
na prática todos os anseios que englobam o entendimento da relação entre funções
executivas e altas habilidades. Tais aspectos refletem não apenas as
dificuldades envolvidas na identificação do indivíduo com altas habilidades,
mas também a compreensão do funcionamento cognitivo desta população específica.
Salienta-se, por fim, que esse artigo direcione pesquisadores a investigações
futuras com intuito de exigir esforços em termos de problematização, discussão
e aprofundamento das técnicas e instrumentos utilizados para circunscrever o
fenômeno das altas habilidades.
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Fontes Adicionais:
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